“Seu irmão mais novo, olhando-o nos olhos, investiu-o de autoridade”.
“Pai, cadê você?”
Comecei a leitura do livro Magnólias 57 com uma certa resistência, que fui me dar conta só depois, na segunda leitura. Gostei da escrita, do estilo, mas sentia algo da defesa atravessando. Tenho para ela duas hipóteses.
A primeira é que talvez eu não estivesse confortável em ler o autor do livro, Norton Dal Follo da Rosa Jr., nesse outro lugar, de escritor de Literatura. Acompanho o Norton há alguns anos enquanto psicanalista, em seus Seminários Clínicos e no estudo de seus livros de Psicanálise. Magnólias 57 é seu primeiro romance. No momento da escrita desse texto me dei conta de que talvez tivesse mesmo um receio – imaginário e prepotente – de “ler o Norton” e, por isso, não pudesse me entregar à leitura do livro como ele merecia em um primeiro momento. Coisas da transferência, que não se discute, se reconhece.
A segunda hipótese, e que só pude pensar na segunda leitura, é que o livro apresentou uma questão já nas primeiras páginas que me fez “me ler”, e algo ali foi muito. Afinal, um livro, assim com um pai e um arco-íris, é apenas um reflexo, como nos ensina Norton ao final dessa obra. Basta saber se poderemos “nos” enxergar.
Diante do convite para comentar o livro em seu lançamento, em Blumenau/SC, me convidei a ler novamente. E me surpreendi com outro livro. Interessante como certas coisas precisam de um tempo. E de um giro.
Após a segunda leitura – feita também porque pude esquecer, à medida em que as páginas iam passando, do autor – uma outra obra foi se abrindo, talvez porque nela pude suportar me reconhecer na posição de “irmão mais velho” do personagem principal. No início da história Albino é uma criança e, ao final, um adolescente. Esse lugar de “irmão mais velho” – no meu caso, irmã – também é um lugar que ocupo na vida e que me trabalhou nos últimos anos, demandando inclusive um novo tempo de análise.
Este texto é um convite para a leitura de Magnólias 57, história que se passa em Santa Maria, cidade do Rio Grande do Sul. Para tanto, vou desdobrar um pouco essa questão que me fisgou, do lugar do irmão mais velho.
Nas primeiras páginas do livro, Albino diz uma frase à Caçula, um de seus dois irmãos mais novos, que saltou aos meus olhos na segunda leitura que me convidei a fazer. “Vou cuidar de vocês, não vai acontecer nada de ruim”. Uma frase que aponta para o lugar desse livro talvez como um clássico, no sentido de que dá a ver uma estrutura que é provável que se repita em muitos laços entre irmãos mais velhos e mais novos onde há uma diferença de idade maior.
Diante dessa frase que embala, Caçula dormiu em seus braços. Que frase potente, uma frase-promessa. Dita por um irmão mais velho, mas que, apesar de mais velho, também era uma criança nesse momento do livro. Essas palavras manifestam a posição que Albino desejou ocupar diante de um pai que mais sumia que aparecia na vida da família, e diante de um irmão, carente de pai.
É recorrente nos depararmos na clínica – e fora dela – com essa situação. Diante da separação dos pais, ou da morte de um deles, ou mesmo de uma viagem longa, a convocatória para que o filho mais velho mude de lugar e se torne “o homem/ a mulher da casa”. Na obra de Norton, ninguém fez essa convocatória a Albino. Ele mesmo que se convocou a cobrir o pai. Desejo edípico reforçado por um pai que de fato some.
É possível o filho mais velho ocupar o lugar do pai? Quais as consequências de se buscar ocupar um lugar que não lhe cabe de direito? E, a mais importante questão que o livro evocou para mim: Onde está o pai? Diante de um pai que de repente se pôde ver nu – Norton faz referência aqui ao conto “A roupa nova do rei”, do escritor dinamarquês do século XIX, Hans Christian Andersen – Albino se pôs a tentar “cobri-lo”.
A cena dos filhos competindo para ver quem conseguia ficar mais tempo embaixo d’água sem respirar, numa das poucas vezes em que o pai reapareceu na casa da família, para mim mostra o quanto pode ser mortífero “competir com o pai”. Rivalização imaginária, porque o que Albino queria mesmo – e isso aparece em alguns momentos do livro – era que o pai ocupasse o lugar que lhe cabia de direito e o resgatasse da água, devolvendo-o ao seu lugar de filho. Dos paradoxos do existir…
A lembrança desse episódio retornava a Albino, em momentos onde ele se questionava: “Pai, cadê você?”.
Albino estava obcecado em superar a marca de dois minutos e vinte segundos, o recorde do pai. Antes de mergulhar a cabeça no tanque, em vez de respirar, a fim de armazenar o máximo de oxigênio em seus pulmões minguados, ele resolveu olhar nos olhos do pai e de lá retirar o ar almejado (…). Queria saber quanto tempo o pai o deixaria sem ar naquele tanque (…). Mergulhado em ideia fixa, Albino queria apenas saber se o pai iria arrancar a sua cabeça lá de baixo com o intuito de salvá-lo.
Não foi o pai quem lhe salvou. Foi Caçula, seu irmão, que disse: “Chega, mano! Desiste”.
Ao ouvir aquelas palavras ele ainda encontrou forças para retirar a cabeça para fora do tanque. Fora movido pelo único propósito de atender à promessa de cuidar dos irmãos.
Junto com sua reação de sair da água, também sentiu as mãos do pai lhe puxando. Talvez o pai também tenha sido puxado pelas palavras do Caçula.
E assim Albino seguiu. A promessa de cuidar dos irmãos diante de um pai que some dá um lugar na vida. Desde que para isso o filho não se coloque a cobrir o pai, porque cobri-lo pode significar negá-lo. E isso tem consequências, também na vida.
Albino começou a sofrer com insônias (…)
O desafio era manter-se acordado como uma sentinela, disposto a proteger o quarto dividido com seus dois irmãos. Tarefa nada fácil para quem ainda não se acostumara com os ruídos da madrugada.
Então, Norton escreve uma frase importante: “Albino tinha dificuldade em aceitar que algumas coisas precisavam ir embora”. Quem não? Como não se reconhecer aí?
Seu pai tinha ido embora na realidade. Mas suas palavras, tiveram valor? Afinal, como nos diz Lacan em seu Seminário V, “As formações do Inconsciente” “o pai é uma metáfora”. Ele diz: “uma metáfora, como já lhes expliquei, é um significante que surge no lugar de outro significante” (p. 180). Será que seu Oliveira, o pai de Albino, e outros que puderam com ele compor o lugar do pai produziram marcas que possibilitaram o personagem principal de Magnólias 57 engendrar trocas na vida?
Diante das insônias que teimavam em deixá-lo acordado, e depois de ter ido a uma benzedeira, Albino ganhou uma “tesoura mágica” da avó materna. Uma tesoura que corta sonhos ruins. Que linda metáfora para o lugar do pai! Com ela, pôde voltar a dormir. A vó lhe disse: “sonhos ruins temem tesouras abertas”.
Sim, era preciso cortar para seguir. Ainda que seguir fosse difícil para Albino, que estava “mergulhado em ideia fixa”. Escreve Norton: “Albino precisaria de anos para entender que o rumo das coisas não dependeria de seus anseios”.
Então ele se pôs a viver uma experiência no terreiro de Pai Manuel do canto Ó, numa passagem, para mim, muito inusitada do livro – se não fosse trágica. A experiência era Trocar de Vida. Em uma das mudanças de casa com sua mãe e seus irmãos, foi dito a Albino que ele possuía mediunidade e teria sido escolhido para “proteger a casa”. Quando a posição fantasmática se encontra com espíritos é um perigo!!!
Decidiu desistir da ideia de trocar de vida.
Começava a sentir na pele o quanto cada processo de mudança requer perdas. De qualquer forma, abrir mão de velhas formas de suportar o mundo significava salvar a própria pele. Albino precisava abandonar o Preto Velho.
Conseguirá Albino salvar – e nesse caso, ocupar – a própria pele?
Antes de finalizar esse texto-convite para a leitura dessa sensível obra, gostaria de trazer dona Gloria, mãe dos meninos, que até certo ponto do livro vivia “embriagada pelo desânimo” e reconhecida pelos filhos como quem não tem voz. Mortífero, especialmente quando se é criança, quando o pai some e a mãe desiste. É nessas horas que os irmãos – os amigos, a escola – podem salvar do afogamento pela pulsão de morte. Para dona Gloria, “romper com os fluxos de repetições mórbidas e o cultivo dos espaços sombrios de sua alma, apesar de necessário, exigia um esforço imenso”. Em certo momento, o filho do meio, Juca, diz à mãe: “Tu não resolves merda nenhuma nessa casa”.
Porém, na metade do livro, no capítulo do livro chamado “Quando o amor salva”, Norton passa a chamar dona Gloria de Gloria. Ela volta a se arriscar a sentir na pele a sua vida.
Quais as consequências para um filho quando uma mãe se posiciona em Nome Próprio? Afinal, o melhor amor que se pode transmitir a um filho é o amor à castração. Ou: o amor ao desejo!
Desejo que esse livro alcance muitos desejos e leituras!
Daniela Bridon é psicanalista, doutora em Psicologia e membro da APPOA (email, @DanielaBridon, @psicanalise_na_vida)
Foto da Capa: Reprodução
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