Há um fortalecimento do jornalismo local em curso no Brasil como desdobramento da complexidade imposto pelo ambiente digital e nossas reconfigurações. Eu considero esse fenômeno a lenta e contínua revolução emergente da cauda longa da internet, ou seja, da segmentação e horizontalização de oportunidades. São empresas menores, com equipes pequenas e abrangência local, para fazer coberturas de notícias da cidade, do bairro, de uma comunidade específica.
É ótimo, mas nem tanto. Portanto, temos um paradoxo: a mesma internet a partir da qual sobem muros verticais intransponíveis em plataformas digitais também permite a multiplicação de iniciativas jornalísticas horizontais. No vertical, há a dominação, a desinformação, o tráfego pago (ou morte!). No horizontal, há modelos alternativos em desenvolvimento, inovação, disrupção a partir do olhar para a comunicação geograficamente próxima.
O fenômeno é um contramovimento em relação à formação dos grandes conglomerados de mídia predominantes no século XX, quando cresceram as empresas de mídia, as quais dominavam os modos de produção de jornalismo e entretenimento em rádio, TV e jornais impressos. A internet e miniaturização dos dispositivos digitais como os smartphones popularizaram o acesso aos meios de produção, publicação e circulação de produtos de mídia e reconfiguraram a dominação.
O acesso aos meios de produção associados à precarização do trabalho em grandes grupos empregadores e a condições favoráveis para criação de pequenas empresas e empreendedorismo em comunicação e jornalismo são fatores impulsionadores das iniciativas digitais. As empresas gigantes de comunicação diminuíram de tamanho, tiveram queda de faturamento comercial e de audiência. Houve crescimento de competitividade entre os grandes: canais all news, streamings, portais, TVs por assinatura, TV aberta, rádios web, apps de rádio. Muitas opções levam a uma dispersão dos públicos.
Se no século XX os grandes grupos de mídia eram criticados por manipular os conteúdos para fazer caber em formatos jornalísticos industriais, superficiais e interessantes para a audiência, hoje as sociedades sentem falta de uma unidade ou de um valor caro ao jornal: ser universal. A universalidade no direito indica serviços públicos a serem ofertados a todos os cidadãos, com caráter genérico e universal com garantia de acesso a todos. A dispersão da oferta de notícias, cada vez mais segmentadas e fractais, consumidas em função de circulação algorítmica nas mídias sociais, extinguiu a natureza de uma mídia universal e generalista sobre as notícias nacionais e regionais.
O ponto de virada tem nome e sobrenome: jornalismo local. Enquanto os veículos nacionais dispersam, os veículos locais aproximam. Aliás a proximidade é um valor noticioso importante. Responda rápido: considerando um acontecimento de mesmas proporções, você prefere ler sobre um incêndio ocorrido no seu bairro ou em uma cidade russa? O local tem um potencial de gerar identificação e impacto mais direto no público e provocar uma percepção de valor: leio, assisto e ouço porque me sinto bem-informado. E o local também se constitui universal, pelo menos, para o universo circunscrito ao local.
Parece otimista demais? Pois o jornalismo local cresce firme e forte e eu posso provar. Aliás, não só eu, uma aliança de dezenas de jornalistas-pesquisadores dedicados a levantar há seis edições o mapa do jornalismo local no Brasil. O projeto chamado de Atlas da Notícia, pela primeira vez desde 2017, aponta uma redução no que eles chamam de deserto de notícias. Desertos são cidades e regiões onde não existe nenhum veículo jornalístico em atuação.
A pesquisa considera os 5.570 municípios brasileiros e desde 2019 o percentual de desertos vem reduzindo. Um dos motivos é o crescimento das iniciativas 100% digitais e o mapeamento de rádios comunitárias. No resultado comparativo com o ano de 2022, as estatísticas desta edição resultaram em uma soma de 575 iniciativas nativas digitais e 239 rádios a mais na base de dados.
A pesquisa aponta também um dos maiores desafios para as empresas jornalísticas: a sustentabilidade financeira relacionada aos modelos de negócios e à monetização dos conteúdos. O financiamento do jornalismo digital diante de plataformas de redes sociais tem se mostrado uma batalha inglória, por isto é tempo de mobilizar anunciantes e jornalistas empreendedores na busca de melhores práticas e soluções inteligentes para essas iniciativas sobreviverem e prosperarem. Uma sociedade bem-informada e com um veículo local de referência ficará menos suscetível a fake news e boatos. Essa virada de chave é boa para o jornalismo, para a economia, para a sociedade, para os públicos e para a nossa democracia.