O mês de maio de 2024 foi devastador para a cidade de Porto Alegre, assim como para todo o estado do Rio Grande do Sul. As fortes chuvas devastaram cidades, rios transbordaram e tomaram espaços que antes nunca se imaginou que chegassem. São centenas de mortos e desaparecidos, famílias desalojadas e enlutadas; todas são parte deste cenário desolador.
A natureza se transforma de forma muito rápida em reação às ações humanas, com eventos que cobram o preço irreparável de vidas perdidas. Furacões, enchentes, estiagens, elevação das temperaturas, entre muitas outras consequências. Pensar sobre isso é importante, porém, a sociedade precisa agir em direção à sustentabilidade de forma equilibrada com desenvolvimento econômico e socioambiental, com práticas preventivas e preservação da natureza.
Os resíduos são parte deste contexto. O descarte incorreto, o consumo exacerbado da sociedade, desmatamento, entre outros fatores que vivenciamos no nosso dia a dia, contribuem para que esses fenômenos climáticos ocorram. Vivemos num cenário de conflitos ambientais por todo o mundo. Os recursos naturais são o epicentro das discussões de grupos sociais e econômicos divergentes, que lutam por seus interesses, na maioria das vezes, não levando em conta as necessidades sociais da população mais pobre, que é a mais afetada.
Um dos serviços essenciais da cidade de Porto Alegre foi duramente atingido: a Coleta Seletiva. Um trabalho que destina, diariamente, os resíduos coletados às 17 Unidades de Triagem contratadas pelo DMLU (Departamento Municipal de Limpeza Urbana) e a mais 03 unidades que não tem contrato e recebem uma carga por dia.
Estes espaços estão há anos sucateados e, com a chuva, pioraram, gerando a suspenção dos serviços em 9 deles, sendo 6 contratados pela Prefeitura e os 3 que recebem uma carga por dia. São em torno de 130 profissionais/catadoras(es) que já tem um histórico de vulnerabilidade social, violência doméstica e exclusão social pela sua invisibilidade perante a sociedade. Agora, ainda estão sem renda, uma vez que os prédios foram, em diferentes níveis, comprometidos e a dificuldade de limpeza é enorme, pela quantidade de rejeitos e lama. Alguns receberam mutirões de limpeza, com voluntários para auxiliar, e em outros os próprios catadoras(es) deram conta da tarefa, ou ainda estão dando conta, já que o ente público pouco, ou nada, fez.
Com em torno de 350 profissionais contratados pela Prefeitura, o número de 130 atingidos chega a quase 40% do total. E todos, junto com suas famílias, dependem da triagem dos resíduos oriundos da coleta seletiva para obtenção de renda.
Existem prédios onde a Defesa Civil ainda não foi realizar vistoria, colocando em risco, inclusive, a vida de quem trabalha neles. Outros ainda aguardam, há meses, recursos para obras já aprovadas, como reparos em telhados, cestos etc. Muitos que receberam, em maio deste ano, recursos para consertos e melhorias por estragos causados pelas chuvas ocorridas em setembro de 2023 tiveram que parar ou nem iniciar as obras, atrasando o serviço e, consequentemente, o tempo de espera para retorno ao tão necessário trabalho.
Hoje, os profissionais e os equipamentos, de alguma forma, são amparados pela sociedade civil organizada, através de campanhas de arrecadação de recursos e apoio direto por voluntariado, muitos difundidos e subsidiados por meio dos grupos do POA Inquieta. Mas estas ações, por mais importantes que sejam, de alguma forma deixam os verdadeiros responsáveis acomodados numa zona de conforto.
O que é mais desolador é que estas pessoas estão completando 60 dias sem trabalhar, sem renda para o seu sustento e de suas famílias. O auxílio financeiro promovido pelo Governo do Estado, de uma parcela de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), e o cartão Auxilio Recicladores, de R$ 670,00 (seiscentos e setenta reais), pagos mensalmente pela Prefeitura de Porto Alegre, não atendem às necessidades acumuladas destes profissionais, que acabam ficando inadimplentes com seus compromissos, aumentando ainda mais a situação de vulnerabilidade. Devemos registrar que as outras 11 Associações/Cooperativa contratadas, que abrigam 220 trabalhadores, mesmo sem serem atingidas diretamente pela enchente, também tiveram sua renda comprometida a partir da impossibilidade de comercialização do material durante todo o mês de maio, por conta das estradas rompidas e outras dificuldades que impediram o escoamento dessa produção pela indústria.
“A gente não quer viver de auxílio, nem de doação, a gente quer ter condições para trabalhar”, afirma o catador J. de 45 anos
Profissionais que prestam um serviço essencial para a cidade, que trabalham em regime associativo/cooperativado, estão sendo colocados, mais uma vez, na condição de mendicância e descaso pelo poder público. Por anos, catadoras(es) clamam por melhores condições de trabalho e pagamento justo pelo serviço prestado. Em 2024, pela primeira vez, a categoria levou uma proposta para a Prefeitura, gerando algumas audiências de conciliação, promovidas pela Justiça do Trabalho, onde, ao final, a proposta do Executivo Municipal é a entrega da Gestão dos Resíduos para o setor privado. A privatização do Gerenciamento dos Resíduos, segundo a Prefeitura, é a única forma de obter recursos para melhorias nas estruturas e aumento de investimentos para equipamentos e tecnologias nas Associações e Cooperativas de Catadores. Porém, os catadores têm a compreensão de que esta alternativa é maléfica para a categoria, e contrapõem que a Coleta Seletiva deva permanecer sob a chancela do Município, com um contrato que preveja o pagamento pelo serviço prestado.
Enquanto isso, a vida segue seu rumo e a categoria de trabalhadores essenciais para a sociedade continua desassistida. Que, ao menos, as chuvas cessem e todos possam seguir trabalhando e vencendo, a cada passo, as condições precárias e a pouca renda que buscam juntar para a sua sobrevivência.
Simone Pinheiro é assistente social, mestre em Ciências Sociais e assessora técnica de Associações/Cooperativa de Catadores.
Foto da Capa: Acervo da autora.
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