“When I get older losing my hair
Many years from now…”
(When I’m sixty-four. John Lennon / Paul McCartney)
Meu pai, quando se referia às consequências de avanços da idade, afirmava, com irônico conformismo: – É matemático!
Dores articulares, trajetos varicosos aqui e ali, músculos que vão passear, falhas no jogo da memória, a vista cansada, o ouvido – o, o que? O império dos sentidos em lenta derrocada. Resta a sabedoria, essa última quimera que pode ou não ser conquistada. Depende também de bom senso e algumas bênçãos, de fé ou da sorte – ou qualquer outra que equivalha a um trevo de quatro folhas.
De resto, corrigir, com cautela e discernimento, entraves e azares. Para tudo, ou quase, pode haver tratamento. Poucas coisas têm cura, mas há controle, há ajustes e há melhorias. Muitas vezes adotando, ainda que tarde, o que deveria ser prevenção.
À medida que também avanço, tenho partilhado a compreensão do meu pai. Aprendeu a fazer cálculos como Caixeiro-Viajante e no Armarinho de Miudezas, ocupação de toda a existência. Mas não me refiro à certeza do inexorável peso da idade, um numeral que vai se avolumando. A resposta pode estar no número π (em português se diz pi).
O Pi é uma constante matemática. A razão, ou seja, uma divisão, entre o comprimento de uma circunferência e seu diâmetro, é aproximadamente igual a 3,14159. Ele aparece em diversas fórmulas matemáticas e também físicas. Diz-se que é um número irracional, porque não pode ser expresso como a razão de dois inteiros, embora frações, 22/7 por exemplo, sejam usadas para aproximações do seu valor.
A consequência é que sua representação decimal nunca acaba, nem entra num padrão que se repete infinitamente (assim como acontece em 3,3333…). Ele é um número transcendente, nunca será o resultado final de uma equação.
Remonta a milhares de anos a tentativa de computar o valor do π. Egípcios e babilônios, entre outras civilizações antigas, debruçaram-se sobre ele. No ano 250 a.C., o matemático grego Arquimedes criou um algoritmo para aproximar o número a uma precisão arbitrária. No século V, os chineses estenderam o pi a sete dígitos. Mil anos depois, a primeira fórmula computacional foi descoberta, baseada numa série infinita.
A letra grega π foi dada por nome de batismo pelo galês William Jones, em 1706.
Nos séculos XX e XXI, cientistas da computação e matemáticos desenvolveram novas abordagens. Combinadas com o aumento da potência da informática, estenderam a representação decimal do π para trilhões de dígitos.
Há no calendário um dia de comemoração do Pi. Quatorze de março. Isso porque os norte-americanos datam invertido, 14 do mês 3 para eles é 3/14, a aproximação mais conhecida do número π. Levando o Pi até a 5ª decimal: 3,14159, o clímax da festa, a “hora” mais exata se dá às 1:59 da tarde.
Além do dia e da hora, há também o “segundo” do Pi. Para acertá-lo, é preciso chegar à 7ª casa decimal: 3,1415926. No marcador do relógio: 1:59:26 do dia 14 de março.
Para alguns, o verdadeiro “segundo” do Pi teria acontecido em 14 de março de 1592, às 6:53:58. Conta-se aí até a 11ª casa decimal. Eu não acredito muito que alguém, à época, tenha se dado conta disso.
O primeiro festejo do Dia do Pi deu-se em 1988, na Califórnia. Seu idealizador, o físico Larry Shaw (1939-2017), acabou sendo conhecido por “Príncipe do Pi”. Na primeira edição, no Exploratorium, um museu de ciências, tecnologia e artes de San Francisco, os funcionários e o público marcharam em torno de um dos espaços circulares e serviram tortas (em inglês, torta é pie; a pronúncia deles é a mesma de Pi: pai). No ano seguinte, acrescentaram pizza ao cardápio da festa. Mas não acabou aí, outros simbolismos surgem para marcar a data. Para alguns, coisa de gente algo exagerada, da tribo dos nerds.
O fato de 14 de março ser o dia do nascimento de Albert Einstein (em 1879) e também da morte de Stephen Hawking (2018) reforça e motiva ainda mais. Um misticismo que pode parecer paradoxal tratando-se do povo das ciências exatas, não fosse pela impressão de saudável atitude – a de não se levarem muito a sério. Faz lembrar a clássica foto de Einstein, com a língua de fora.
Pode-se defender uma eternidade química. Nossos átomos seguirão, adiante da morte. Sobreviveremos nos elementos que nos compõem. Em maiores quantidades: oxigênio, carbono, hidrogênio, nitrogênio, cálcio, fósforo. Um pouco de enxofre (alguns parecem ter bem mais do que outros), potássio, sódio, cloro, magnésio. Nossas partículas ensaiarão novos passos de dança.
Certas teorias filosóficas não são excludentes. Centenário em 24 de abril de 2025, os átomos do Seu Armando persistem na terra, na água e no ar desde 2014, quando a soma numérica da idade chegou aos 89 anos, 6 meses e 5 dias. Mas volto à afirmação que ele sempre repetia. O decorrer do tempo, além de químico, também “é matemático”.
Rege-se o cálculo do perímetro da vida pelo número Pi. Nunca será uma fração exata. É, portanto, irracional. Uma sequência aleatória e transcendente, tal qual a memória que guardo do meu pai, ao infinito e além.
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Foto da Capa: Autor desconhecido