Os anos 90 foram bem peculiares no que se refere à cultura televisiva.
O leitor que tiver mais ou menos a minha idade – pelos arredores dos 40 anos – certamente vai se lembrar dos finais de semana jogado no sofá assistindo à programação da TV aberta.
Um dos pontos altos (agora pensando, altos mesmo?) eram os programas de auditório, tão populares aqui no Brasil que, de certa forma, moldaram muito do pensamento de minha geração. É triste, mas muito de nós ainda estamos nos havendo com a tentativa de desconstruir alguns estereótipos de gênero, raça e classe veiculados por estes programas.
Ou não lembramos do prazer sádico de Sílvio Santos atirando aviõezinhos de dinheiro para a plateia? Ou da loucura produtiva de um quadro cuja meta era “se virar nos trinta”? Ou da decepção daquela pessoa humilde cujo desejo não foi contemplado pela Porta da Esperança?
Mas o caldo entornava mesmo quando entravam em cena as relações de gênero e os conteúdos sexuais.
Por exemplo, tínhamos a famosa Banheira do Gugu. Para os leitores mais novos, explico, ainda que tudo fosse mesmo bem literal: atrizes e dançarinas que estavam em voga no momento se digladiavam em uma piscina inflável para ver qual delas encontrava o maior número de sabonetes submersos. Elas vestiam biquini, claro.
Os marmanjos todos assistíamos este quadro na expectativa de que, por leve descuido ou cínica premeditação, alguma peça de roupa caísse e fossem exibidos, em cadeia nacional, os seios de alguma daquelas famosas.
E isso acontecia com frequência, claro. Aliás, era um acidente previsível e esperado.
Essa era a televisão dos anos 90.
Chama o intervalo, corta a cena e voltemos para os tempos atuais.
Estamos nos anos 2020 e a atenção que dedicávamos à TV agora vai para os celulares, em especial, para as redes sociais. Scrollamos (primeira vez que escrevo essa palavra na minha vida) o Instagram com o descompromisso entediado com que assistíamos à programação vespertina da TV aberta.
Para manter a audiência nos anos 90, era preciso que volta e meia acontecesse o “acidente” que expunha o seio. Isso fazia com que nos sentássemos novamente na frente da TV no domingo seguinte, na esperança de termos a mesma premeditada sorte.
Era necessária uma pequena dose de satisfação para cativar o público, na esperança de que seríamos novamente recompensados pela nossa atenção.
Hoje em dia, entretanto, aquele tão desejado mamilo acidental não só não aparece como também é censurado sumariamente pelo algoritmo das redes. O peito nu de um homem e a foto de um assassino em massa, não – um mamilo, sim.
Não seria de se esperar o contrário? Não poderíamos imaginar que o corpo feminino fosse sendo libertado das amarras da transgressão à medida que a discussão das pautas de gênero fosse cada vez mais sendo levada adiante?
Pois é. Não foi o que aconteceu.
Devo à minha companheira a reflexão de que, atualmente, uma mulher que não esteja dentro do padrão e que exponha seu corpo é vista como alguém confiante de si e de bem com suas curvas e com a sua naturalidade. Só que isso não vende – aí está o xis da questão.
Em teoria, alguém satisfeito com seus contornos não vai clicar naquele post patrocinado que tenta vender maquiagem, gel redutor, cirurgia plástica, etc… Afinal, o algoritmo é calibrado para entender o que sentimos que nos distância do ideal – e para nos vender isso.
Um consumidor só compra algo porque aquilo lhe falta. Ou, para dar mais uma volta, compra aquilo que o faça se sentir dentro de uma norma social, de um padrão da cultura.
E acredito que é aí onde entra toda uma lógica bastante contemporânea de produção incessante de uma insatisfação impossível de ser resolvida.
Ou seja, os mamilos hoje em dia se tornaram tão “polêmicos”, como diz o meme, não necessariamente porque a sociedade tenha se tornado mais careta, mas porque alguém em paz com seu corpo, especialmente quando se trata de uma mulher, em geral está menos disposto a gastar com produtos e procedimentos estéticos.
Inclusive vemos um movimento de resistência que tenta quebrar esta lógica através de postagens em que aparecem mamilos, mas de forma a enganar o algoritmo, como é o caso da artista @sensural_. É inspirador acompanharmos como é possível ocupar os espaços das redes sociais subvertendo a lógica que as organiza, expondo as entranhas de um mecanismo de reprodução de silenciamento e moralismo.
Se trata de um pudor mercadológico, ainda que muitos reacionários embarquem nessa onda alienados unicamente pelas pautas de costumes da direita conservadora. Nestes casos, o que vemos é uma relação com a nudez atravessada pela ânsia do lugar de privilégio do homem-branco-heterossexual que se sente ressentido ao ver uma mulher em pleno exercício de sua liberdade.
Isso talvez explique por que os mamilos acidentais daqueles quadros televisivos dos anos 90 não provocavam tanto alvoroço como acontece nas redes sociais hoje em dia: o problema parece ser não os mamilos em si, mas uma nudez que seja símbolo de emancipação, e não de objetificação do corpo feminino.
Uma mulher de bem com seus contornos não é a consumidora esperada pelo mercado. E isso talvez seja a mais pornográficas das afrontas.
Foto da Capa: Reprodução do Instagram @sensural_