Nesta semana, o noticiário da área política destacou o evento do PL Mulher em Florianópolis no dia 29 de julho. A estrela do encontro no Estado tido como um dos mais bolsonaristas do Brasil era a ex-primeira dama, Michelle Bolsonaro. Os vídeos do evento mostram uma Michelle desconfortável com a chegada fora do roteiro do ex-presidente, ovacionado aos gritos de “mito” interrompendo o evento e as falas da vice-governadora de Santa Catarina, Marilisa Boehm e da própria Michelle.
“Era para ele aparecer no telão, não era para ele estar presente”, explica a ex-primeira dama, tentando enquadrar o marido, sem sucesso. Ao conceder um minuto de fala, Bolsonaro ocupou oito minutos, sem se importar com o incômodo provocado. A ferida sentida pela ex-primeira dama tem nome: manterrupting. É provável que as mulheres filiadas ao PL não saibam o que significa o termo hoje associado às lutas feministas em busca de espaços de fala de maior prestígio e autoridade para mulheres sistematicamente interrompidas por homens em reuniões, eventos e outros fóruns de interação social.
O evento de direita, mais especificamente do PL com presença do casal Bolsonaro, provavelmente não chamou a atenção da pauta programática porque as mulheres de direita tendem a ser mais condescendentes com o comportamento masculino, em função da pauta conservadora. A direita aceita a desigualdade de gênero com mais facilidade em relação à esquerda. A direita e a esquerda se diferenciam na compreensão da relação aos papeis dos homens e das mulheres: as desigualdades são tratadas pela direita como inevitáveis e pela esquerda como solucionáveis por meio de políticas públicas, como explica Bobbio no livro Direita e Esquerda sobre o qual já falei neste texto anterior. Estar mais à direita ou mais à esquerda é sempre relativo ao local no qual a pessoa se encontra. Portanto, há de haver uma mulher de direita identificada com ideais de igualdade de gênero e, quem sabe, ela até se posicione publicamente contra o comportamento de interromper uma mulher durante uma conversa, apresentação ou deliberação política. Mas essa é uma pauta recorrente das mulheres identificadas com os ideais da esquerda.
O termo manterrupting começou a ser popularizado após artigo publicado em 2015 no The New York Times. Com o título “Speaking while Female” (falando enquanto mulher), o texto foi escrito por Sheryl Sandberg, então chefe de operações do Facebook, e por Adam Grant, professor da escola de negócios da University of Pennsylvania. A dupla citou um estudo feito por psicólogos de Yale que mostra como senadoras americanas se pronunciam significativamente menos que seus colegas masculinos de posições inferiores. No Brasil, o termo entrou no debate público em 2018, puxado pela visibilidade ganha pela então pré-candidata Manoela D´Ávila.
No programa Roda Viva, a então pré-candidata foi entrevistada assim como outros políticos. Os números não deixam dúvidas: Ciro Gomes foi interrompido 8 vezes, Guilherme Boulos, 12 e, Manuela, 62. A questão provocou uma discussão importante no ano eleitoral e o tema foi adotado pela Manuela que publicou conteúdos nos canais digitais próprios para explicar o que significa o termo. Neste vídeo no YouTube, ela exemplifica o manterrupting como aquela situação que leva a mulher a ter de dizer, quando entre muitos homens, a clássica frase “Deixa eu terminar meu raciocínio, por favor”. A situação, segue Manoela, acontece em vários ambientes de convívio social, profissional, político e acadêmico e tende a ser ainda mais inibidora para mulheres negras, indígenas e pouco escolarizadas.
A prática de manterrupting não tem partido político porque os direitos civis, políticos e sociais das mulheres são uma luta centenária. O direito da mulher ao voto não tem cem anos no Brasil. A participação de mulheres na Academia Brasileira de Letras em 126 anos é de 10 mulheres para 339 homens. Na política eleitoral não é diferente. Mesmo a população brasileira tendo maioria majoritária de mulheres, elas ainda são minoria nos cargos eleitorais. Em 2022, foram eleitas 302 mulheres, contra 1.394 homens para a Câmara do Deputados, Senado, Assembleias Legislativas e governos estaduais. A cidadania da mulher não é uma conquista assegurada, é um processo contínuo, com avanços e retrocessos. Ao longo do século podemos contar vitórias importantes, porém em uma trajetória não linear.
O incômodo de Michelle e outras mulheres de direita é um indício de sororidade digno de registro. Talvez boa parte das mulheres ali presentes não consigam alcançar o sentimento de irmandade, empatia, solidariedade diante do desrespeito mostrado nas imagens amplamente divulgadas nos canais digitais. Mas a publicidade das imagens desperta o pensamento crítico e amplia o debate sobre as escolhas políticas e os critérios de cada eleitor e cidadão. A formação de consciência política não se conquista na véspera do pleito. É de pouco em pouco. Porém, é preciso sair da caverna, enfrentar o desconforto e trocar a sombra pela luz.