A Bahia foi o encontro com a diversidade, o transbordamento de um afeto genuíno que germinou e se multiplicou para além das fronteiras de casa nos anos 1970. Éramos jovens curiosos e sonhadores. Queríamos desvendar horizontes e colocar os pés no mundo do jeito possível. E o jeito na época foi uma longa viagem de ônibus, da rodoviária de Porto Alegre para a rodoviária do Rio de Janeiro e de lá para a rodoviária de Salvador. Júlio, nosso primo-irmão, e Marlene, minha irmã, foram os pioneiros desta aventura no verão de 1973. Júlio levou Marlene, recém-formada em Letras, porque já conhecia e queria voltar. Estava apaixonado. Marlene ficou encantada com o que viveu por lá e me estimulou muito para ir. E lá fui eu, de férias, no verão de 1974, também de ônibus, fazer a primeira viagem para além das fronteiras gaúchas.
Minha chegada ao Pelourinho foi de muita emoção, assim como a entrada no prédio de número 16. O encontro com aquela comunidade fora da curva foi um êxtase que me fez chorar de alegria abraçada no Júlio. Rui, meu irmão, estava junto. Bem chegados, no dia seguinte partimos para os primeiros passeios – uma volta no Pelô, como todos chamavam, depois Praça da Sé, Terreiro de Jesus, Praça Castro Alves, Elevador Lacerda, Porto da Barra. As praias incríveis e o contato com as festas tradicionais da capital baiana, como a Festa do Bom Fim e o Carnaval, confirmaram que o deslumbramento não era em vão, muito menos a paixão por aquele território inusitado que nos acolhia. Mais do que tudo, o encontro com pessoas libertárias, leves e soltas, que se tornaram nossos grandes amigos. Amigos que nos ensinaram muito sobre vida, sobre as escolhas para ser o que se é e, certamente, aprenderam com a gente. Somamos nossas diferenças e seguimos juntos, de mãos dadas, vivendo a nossa diversidade sem medo. Júlio foi nomeado Embaixador do Rio Grande do Sul no Pelourinho e nomeou Marlene Embaixatriz. A partir daí, fomos ser gauche na vida pelo mundo, atravessando fronteiras.
Aldeia Hippie, Arembepe e um Mar que se abria para nos receber
Mais tarde, conhecemos a Aldeia Hippie dos acampamentos e festas enluaradas, em Arembepe. O encantamento foi imediato. As conversas e a troca de experiências eram muitas naquele paraíso e os amigos baianos, decididos a mudar, foram descobrindo outras maneiras de viver. Em um dos tantos verões de férias nos anos 1980, chegamos à Praça das Amendoeiras/Arembepe e vimos um boteco à beira-mar. E lá estava o nosso amigo, também ator de teatro, João Sá, determinado a dar asas para um novo jeito de viver. Abrir mão do paletó e da gravata de executivo de empresa, que o prenderam por tantos anos, era uma questão fundamental. Depois de conhecer um jovem de Bruxelas que apareceu na Aldeia, também decidido a mudar o rumo da sua vida de viajante e músico, Thierry Nicodème, o desejo dos dois foi tomando forma. Antes, viajaram pela América do Sul e descobriram outras afinidades. Na volta, decidiram unir talentos e abrir um restaurante em uma das casas mais antigas do local com o nome de Mar Aberto – na frente, a Praça. Nos fundos, o mar calmo.
O espaço, inaugurado em 04 de dezembro de 1984, marcou e marca nossas vidas e nossas férias. Para mim, foi o ponto de encontro das diferenças que nos constituem no coração da vila, que cresceu e hoje é um restaurante conhecido em todo o Brasil e no exterior. Tornou-se referência em gastronomia, com uma vista privilegiada que, em noites de lua cheia, enche os olhos e emociona. Para além da criatividade de João e Thierry, do profissionalismo, do cardápio maravilhoso, do bom atendimento da equipe e das singularidades, o afeto genuíno e a alegria são explícitos.
Nesse Mar Aberto, em Arembepe, que chegou aos 40 anos, ampliamos e solidificamos uma irmandade fascinante, nascida nos anos 1970 das nossas primeiras viagens. Uma irmandade que enfrentou com coragem e dignidade todo tipo de discriminação e se espalhou, do Rio Grande do Sul para a Bahia, da Bahia para o Rio Grande do Sul e da Bahia para o mundo.
Sempre que possível, levamos familiares, pais, sobrinhos e amigos para conhecer a Bahia e estes lugares tão especiais, que abriram tantas portas para o nosso jeito singular de ser. Por conta deste Mar Aberto, acolhedor e iluminado, ganhamos mais dois sobrinhos, Luara e Narayan, filhos do Thierry. Reafirmamos nossa irmandade, a diferença que nos constitui e celebramos a riqueza da diversidade que um dia nos juntou para viver a vida, livres, leves e soltos.
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Foto da Capa: Mar Aberto / Acervo da Autora