Há uns 10 anos, Luis Fernando Verissimo teve o seguinte insight ao comentar em sua coluna no Estadão a adaptação cinematográfica que David Cronenberg havia dirigido para o romance Cosmópolis, publicado em 2003 pelo escritor norte–americano Don DeLillo:
“O dinheiro perdeu seu papel na grande narrativa do capitalismo que vem da acumulação primitiva de capital e da industrialização e chegou à globalização, e hoje é apenas um interlocutor de si próprio. A narrativa acabou, a riqueza se acumula entre poucos e beneficia ainda menos e o dinheiro, desobrigado de fazer sentido e de seguir qualquer espécie de roteiro, só produz monstros como o jovem financista do filme. O capital financeiro dita a história econômica do mundo e inventou uma nova categoria literária: o diálogo de um só”
O comentário é baseado em uma das teses centrais do livro – e reproduzidas no filme. Cosmópolis é, mais do que um romance, uma parábola moral sobre a anomia da primeira década do século XXI, expressa na figura de um (muito) jovem bilionário do mercado financeiro que passa o dia conversando com empregados e associados, tendo sexo eventual sem plena satisfação e testemunhando, sem compreender, a ascensão de uma atmosfera hostil que vai dar origem a uma anárquica série de protestos de rua (numa intuição com a qual DeLillo antecipou em anos a eclosão do movimento Occupy Wall Street).
O financista do livro decide, num impulso caprichoso, que gostaria de cortar seu cabelo no mesmo barbeiro que o atendia na infância, numa vizinhança algo afastada de Manhathan. A tarefa se torna uma espécie de jornada lenta e excruciante porque as ruas do centro financeiro da maior cidade do mundo estão bloqueadas pela polícia ou congestionadas de manifestantes que protestam contra a visita à cidade do presidente dos EUA. O personagem não precisa dessa viagem toda para contar o cabelo – quase toda a narrativa o mostra fazendo praticamente tudo dentro do carro, inclusive uma consulta a um urologista que é apanhado pelo veículo especialmente para isso. Ele apenas quer ir até o barbeiro. E não consegue, por razões que – no alheamento tornado possível pela astronômica fortuna que ele pode estar perdendo por insistir numa série de investimentos arriscados – ele não compreende muito bem. Por que tanta comoção pela visita de um presidente quando o real poder do país são caras como ele, viajando naquela limusine trancada no trânsito? Por que essas pessoas estão protestando contra o inevitável futuro?
Marcas do tempo
Cosmópolis, com sua pátina bastante densa de sátira, é uma obra que carrega marcas distintivas da época em que foi produzida, e não deixa de ser fascinante observar o que, nesse material, envelheceu nos últimos 20 anos. É uma história produzida na Era Bush, em que um presidente impopular passando leis autoritárias para manter acesa uma guerra sem possibilidade de vitória (porque sem objetivos definidos) servia como um espantalho para a indignação popular enquanto a aliança dos grandes operadores do mercado financeiro com a indústria bélica garantia terreno de formas até então sem precedentes – mas bem tímidas perto do que viria depois.
Voltando à citação do Verissimo no início do texto: é uma frase lapidar, como as de Verissimo costumam ser. Mas com a distância de uma década se percebe que o cenário mudou: está por estrear aí por esses dias um filme dirigido por Ben Affleck, um drama sobre como, com a criação da linha de tênis de sucesso Air, em parceria com a lenda da NBA Michael Jordan, a Nike se tornou uma das grandes marcas contemporâneas da indústria de material esportivo. Também este ano deve pintar no mercado a versão da diretora Greta Gerwig para a Barbie, agora repaginada, por algum truque conceitual que eu ainda não entendi, como um ícone de feminilidade empoderada e não como o signo de opressão massificadora que minhas colegas de faculdade diziam que ela era, lá nos 1990. Em 2017, foram lançados quase ao mesmo tempo O Rei do Show — um filme que transformava em um musical “para cima” um pioneiro da indústria do entretenimento e ao mesmo tempo um dos piores seres humanos de seu tempo, P.T. Barnum — e Fome de Poder, sobre o cara que tomou a marca McDonalds e a transformou na franquia onipresente de hoje.
Aliás, não se deve fechar os olhos para o próprio fato de que séries bem-sucedidas de histórias cinematográficas com vários episódios hoje também se chamam “franquias”, deixando o mais explícito possível a vinculação entre Velozes e Furiosos e Fast Food de shopping. Falando sozinho ou indiferente como uma divindade clássica, talvez para evitar a inconveniência de que sua limusine fique outra vez presa em um protesto contra ele próprio, o dinheiro se tornou nesses últimos 10 anos o centro de uma nova narrativa: ele quer ser o herói. E em alguma medida está conseguindo.
Cosmópolis, o filme, lançado mais ou menos 10 anos depois do livro, em um mundo que já havia visto a quebradeira das instituições financeiras na esteira da crise de 2008, faz parte de outro cenário, e perfila-se junto a um grupo de obras que vieram a público para pensar de modo crítico o poder que o mercado financeiro vinha amealhando sem barreiras ou regulações, isolando-se cada vez mais da realidade física, e o quanto os percalços desse sistema interconectado baseado em cortinas de fumaça de “produtos de investimento” no mercado de ações danificavam o tecido profundo dessa mesma realidade – e sem maiores consequências. Não é coincidência que o filme seja contemporâneo de outras produções de impacto tangenciando o mesmo tema, como o documentário Trabalho Interno (2010), de Charles Ferguson ou os dramas Margin Call (2011), de J.C. Chandor; Grande Demais para Quebrar (2011), de Curtis Hanson, todos preparando o terreno para o filme que se tornaria o grande retrato ficcional da crise e que influenciaria até mesmo a estética de filmes com abordagens semelhantes pelos anos seguintes: A Grande Aposta (2016), de Adam McKay.
A revanche do dinheiro
Só que, lamentavelmente (em mais de um sentido), na mesma época Steve Jobs morreu, consolidando seu status como santo secular do capitalismo tardio, vindo à Terra como o messias da palavra e resgatando das fímbrias do abismo algumas de suas tradições mais elevadas, como criatividade corporativa, inovação, a indústria corporativa da música e do audiovisual, o instinto de monetizar qualquer sistema ainda não rendido à lógica do lucro, práticas abusivas de gestão, apropriação selvagem de créditos pelo trabalho alheio, essas paradas aí tão legais do mundo corporativo que todos amam.
Penso que a forma como a morte de Jobs foi tratada pela cultura pop desde então marca o ponto de virada para um “contramovimento” que espelha outro ocorrido na vida real: apenas 15 anos após a quebra do mercado financeiro pela sucessão de quimeras que foi empilhando sem lastro e sem regulação, multiplicaram-se os discursos de que o caminho para a independência neste mundo capitalista de cada vez mais restritas possiblidades é se tornando “um investidor”, em mais um dos incontáveis cases bem-sucedidos de “rebranding” do capitalismo selvagem.
Jobs foi o tema de duas grandes cinebiografias diferentes em um intervalo de meros dois anos. Jobs (2013), dirigido por Joshua Michael Stern, e Steve Jobs (2015), dirigido por Danny Boyle e com roteiro de Aaron Sorkin. O primeiro tem a qualidade de um telefilme meia-boca (ou pior, já que o telefilme Piratas do Vale do Silício, de 1999, sobre a mesma época e alguns dos mesmos personagens, é melhor). O que obteve maior ressonância foi mesmo o projeto com o roteiro de Sorkin, focado em três momentos fundamentais da trajetória de Jobs para fazer um estudo denso das contradições e falhas do personagem. Alguns anos antes, em 2010, David Fincher já havia tomado algumas liberdades com a biografia de Mark Zuckerberg porque estava interessado na ascensão dos novos grandes nomes do Vale do Silício como figuras ao mesmo tempo trágicas e predatórias.
A natureza da ficção
A questão é que, pela própria natureza da narrativa dramática ficcional, o personagem que está no centro, mesmo cheio de falhas, ainda é o herói por quem boa parte da plateia se vê compelida a torcer, e talvez tenha sido isso que facilitou também a incompreensão frequente de O Lobo de Wall Street. A energia maníaca e hiperbólica que Scorsese pôs em sua versão da vida do escroque Jordan Belfort foi tanta que muita gente parece ter esquecido que o personagem termina, em tese, como uma figura patética, derrotado, encurralado pelas autoridades e tendo visto sua vida ruir tanto pessoal como profissionalmente. É possível hoje ver O Lobo de Wall Street sendo usado em memes de encorajamento de perfis de “investidores”, essa figura conveniente que, ao lado do “empreendedor”, tenta distrair você do fato de que o discurso usado até pouco tempo pelo capitalismo, o de que o mercado seleciona por competências, não funciona mais (como discurso, porque na prática sabemos que nunca funcionou mesmo).
Claro, aí temos, bem ou mal, histórias concentradas em protagonistas, personagens, indivíduos. Também em 2011 veríamos o lançamento de outra produção que me parece também responsável por um estranho estado de coisas contemporâneo: Moneyball, de Bennett Miller, sobre como um cara que tinha a manha das estatísticas levou um time pequeno de beisebol de saco de pancadas a uma campanha brilhante. O filme não deixava de representar um amálgama fascinante: era a história de como um único cara, com seu brilhantismo, “mudava a história” de um esporte coletivo por excelência, e ao mesmo tempo esse cara fazia isso com um profundo entendimento das forças subjacentes do sistema. Moneyball era um filme de coach de investimento travestido de história sobre esportes. Poderia ser o filme escolhido para passar este ano mesmo em algum pavilhão da South Summit e não se perderia nada.
Ricos babacas e marcas protagonistas
No fim do ano passado, escrevi aqui neste mesmo site sobre como haviam começado a se proliferar filmes que, mesmo apelando para o surrealismo e para o absurdo, eram mais realistas em retratar os super ricos como inescapavelmente babacas. E imaginava se haveria ali uma tendência tentando contrapor essa idealização do “selfmade man” ou do improvável “bilionário altruísta” que também foi o centro de muitos dos atuais filmes de super-heróis (vide Bruce Wayne e Tony Stark). Hoje acho que a tendência é inequívoca, dado que daquele texto pra agora ainda estreou Triângulo da Tristeza, indicado ao Oscar e tudo mais. Ao mesmo tempo, não dá pra ignorar que essa tendência ainda existe em conflito com outra que avança no sentido contrário, a do capital como o centro e o protagonista até mesmo das histórias contadas pela cultura pop. Claro que a cultura pop sempre foi pródiga em glorificar o status quo e o sistema vigente, é parte de sua própria natureza, mas muitas vezes o modo de fazer isso era subterrâneo, com sentidos produzidos nas dobras dos subterfúgios narrativos. Agora você pode ter um filme sobre a grande aventura que foi a criação do logo de um tênis produzido aos milhões e aparentemente está tudo bem igual.
É um arco engraçado o que percorremos nestes últimos 20 anos. United Passions, o filme sobre a criação da Fifa estrelado por Tim Roth em 2015, chegou aos cinemas na esteira de uma série de denúncias de corrupção e mesmo de prisões de dirigentes, e entrou para a história como o pior fim de semana de estreia de uma grande produção na década. Com produção orçada em US$ 30 milhões, arrecadou US$ 607 quando chegou aos cinemas. O que é bastante justo, se pensarmos que, nas palavras de uma matéria no Guardian, “é o primeiro filme de esportes que acha uma boa ideia focar nos dirigentes em vez de nos atletas” (uma hipérbole, claro, já que Moneyball já fazia isso, apenas era um filme melhor).
Hoje, temos a estreia elogiada por muitos críticos de um filme cujo principal ponto de conflito é saber se uma marca milionária terá condições de fechar negócio de patrocínio com um astro milionário do esporte mais rico do planeta.
Dizem que o filme é bom. Talvez seja. Vai lá ver e depois me conta.
Foto da Capa: Robert Pattinson em Cosmópolis/Divulgação
NEM TE CONTO Nº 9
Hoje o ponto de partida deste texto para falar sobre capitalismo financeiro e cultura pop com histórias heroicas sobre marcas e capitalismo foi um filme que adaptava um romance de Don DeLillo. Nada mais apropriado, então, do que recomendar um conto do mesmo DeLillo, um dos grandes autores políticos norte-americanos contemporâneos, o homem que escava na pós-modernidade seus sentidos de vazio acumulativo, paranoia e anomia.
FOICE E MARTELO, de Don DeLillo
Da coletânea O Anjo Esmeralda (Companhia das Letras, 2011)
Neste conto ao mesmo tempo absurdo e engraçado, acompanhamos o cotidiano de Jerold, um gestor de fundos “hedge” de investimentos que, por fraudes financeiras, foi confinado a uma penitenciária de segurança mínima com outros grandes fraudadores, banqueiros internacionais e protagonistas de grandes escândalos econômicos e financeiros.
Já é cômica por natureza a própria ideia de uma penitenciária como essa em um mundo em que arruinar três países ao mesmo tempo pode dar menos repercussão do que quebrar uma vitrina. Mas Jerold, também chamado Jerry, recebe da ex-mulher a notícia de que suas duas filhas, Laurie e Katie, de 10 e 12 anos, foram selecionadas para participar de um programa sobre mercado financeiro apresentado por crianças. Jerold, no início, por razões pessoais óbvias, é o único a assistir na TV da sala comunitária, mas logo a atração se torna um sucesso entre a população carcerária, e Jerold se vê indeciso entre revelar ou não a informação a seus colegas de pena, ainda mais que os roteiros dos programas começam a se tornar cada vez mais satíricos e radicais.
O elemento de sátira às vezes ácida, às vezes melancólica está sempre presente nas principais obras de DeLillo. Aqui, ele funciona pelo brutal estranhamento do cenário insólito com a narração de eventos muito ancorados no mundo real na época em que o conto foi publicado (não por coincidência, também 2010)