O Sol a que Caetano Veloso se refere em Alegria, Alegria – que se reparte em crimes, espaçonaves, guerrilhas e em Cardinales bonitas – não é o astro-rei e, sim, um jornal de vida efêmera, mas de imensa importância. Primeiro exemplo de um jornal-escola, O Sol foi uma experiência única no jornalismo e na cultura brasileira. Durou pouco – de setembro de 1967 a janeiro de 1968 – mas deixou admiradores e seguidores. Partes importantes da curta trajetória do jornal e dos personagens que estiveram envolvidos no projeto foram lembrados em O Sol – Caminhando contra o Vento, documentário de Tetê Moraes, com roteiro da jornalista Martha Alencar. A ligação de Caetano com o tema não era casual. Dedé, sua namorada à época, era uma das estagiárias recrutadas para participar dessa experiência de jornalismo e laboratório. No filme, O Sol também se abre para outros sonhos, delírios e desbundes.
A filmagem, afinada com o estilo “esquerda-festiva” daquele tempo, foi toda realizada em uma festa que reuniu cerca de 100 pessoas numa cobertura no Rio para um almoço e bate-papo. Só depois de recolher este material (ampliado com imagens de arquivo) que Tetê e Martha foram atrás de outros depoimentos. O elenco é rico em personagens, tanto entre os protagonistas, quanto entre os coadjuvantes, reunindo pessoas que faziam (Zuenir Ventura, Reynaldo Jardim, Ana Arruda Callado, Ziraldo e Martha Alencar) com os que eram notícia (Caetano Veloso, Chico Buarque, Fernando Gabeira, Íttala Nandi, Marcio Moreira Alves e Vladimir Palmeira).
– É um documentário que fala da saudade sem ser nostálgico. Inclusive tem uma certa ironia com a nossa geração, que em muitos aspectos foi derrotada, teve suas frustrações, mas que foi importante por ter tido coragem de fazer muitas coisas – diz Martha Alencar, que foi editora de Cultura do jornal.
E é de Martha Alencar que quero lembrar. Jornalista profissional desde 1962, quando começou a trabalhar em O Globo, Martha se destacaria como secretária de redação do Pasquim, para onde foi levada pelas mãos de Tarso de Castro. Fora ele quem a havia convidado para que escrevesse um artigo no número 1 e os dois já eram amigos desde o tempo em que Tarso havia indicado Martha para ocupar a editoria de cultura em O Sol. Tarso era igualmente próximo de Hugo Carvana, com quem Martha viria a se casar.
Jovem de família tradicional, misto de aristocracia falida mineira com burguesia cearense, Martha foi criada no Rio de Janeiro, tendo sido aluna em colégio de freiras, estudante na Aliança Francesa, discípula do artista Ivan Serpa nas aulas de desenho e pintura no Museu de Arte Moderna (MAM) e, posteriormente, formada em línguas anglo-germânicas pela PUC. Ou seja, pelos costumes da época, era aquela moça bonita criada para se casar com um “bom partido”. Mas os planos de Martha eram outros. Ela gostava mesmo era de frequentar a casa do seu tio Pedro Nava e de conviver com pessoas como Manuel Bandeira.
A entrada no jornalismo se deu por outro caminho. Martha havia sido contratada pela Socila (Sociedade Civil de Intercâmbio Literário e Artístico), entidade criada por Maria Augusta Nielsen, que treinava as candidatas ao título de Miss Brasil e preparava manequins e mocinhas casadoiras. Martha ficaria responsável por escrever as colunas que Maria Augusta assinava em O Globo, no Diário de Notícias e na Tribuna de Imprensa. Os textos com conselhos de beleza, etiqueta e moda garantiam à Martha prestígio e um bom salário, mas não lhe davam satisfação pessoal. Foi então que em 1967 ela resolveu pedir demissão e começar a trabalhar em O Sol.
Com o projeto de O Sol, o jornal-laboratório lançado em 1967 e que vinha encartado como suplemento do Jornal dos Sports, com Martha tendo entre seus colaboradores Ziraldo, Chico Buarque e Carlos Heitor Cony, ela não se aproximaria apenas do jornalismo, mas também da produção cultural, do cinema novo, do grupo Opinião, dos músicos baianos que estavam chegando ao Rio de Janeiro e, principalmente, da militância política. De O Sol, Martha, levada por Fernando Gabeira, logo sairia para ir trabalhar na Departamento de Pesquisa, uma das “editorias” do Jornal do Brasil. Além da Pesquisa, Gabeira levaria Martha para a Dissidência Comunista da Guanabara, a DI-GB, facção de extrema-esquerda que em pouco tempo ganharia visibilidade nacional pelo envolvimento com o sequestro do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969. Visada pelos órgãos de repressão, ela e Carvana deixaram o Brasil em setembro de 1969. Ele foi filmar com Glauber Rocha na África. Ela ficaria autoexilada em Paris. De lá, como colaboradora, mandaria alguns artigos para o jornal e, de volta ao Brasil, em meados do ano de 1970, menos de um ano depois da fuga, com um bebê de colo, aceitaria o convite de Tarso para integrar a equipe. Politicamente, se sentia destroçada, com a sensação de que perdera a guerra e com um sentimento de culpa pelos amigos presos ou mortos.
O Sol é um filme sobre o encontro e – mais ainda – sobre o reencontro. Ao lembrar 1968 – o ano que não terminou e, talvez por isso mesmo, nunca acaba –, o filme recupera ideias e personagens que, adaptando a frase de Che Guevara, envelheceram sem perder a ternura. Jornalisticamente falando, O Sol seria o nascimento de Martha. O Pasquim, seu renascimento.