São mais comuns do que a gente imagina manifestações equivocadas que se referem à maternidade de mulheres que têm uma deficiência. Há desconhecimento, julgamentos e falta de empatia. Ou as mulheres são tratadas como heroínas e louvadas pela coragem, o que remete ao famigerado discurso da “superação”, que não vê como natural uma pessoa diferente gerar uma vida. Ou as mulheres são vistas como irresponsáveis e, muitas vezes, culpadas pelo desejo de ser mãe. Diante destas reações, a pergunta é – Qual a origem de um preconceito que nega às pessoas com deficiência desejos e possibilidades? Nenhuma é a mulher maravilha ou a guerreira imbatível, mas todas são humanas nos seus sonhos, vontades e limites. E é justamente neste ponto que a diferença fala mais alto e a sociedade precisa lidar com o que não sabe e não quer saber. Já não está diante do estereótipo criado pelo senso comum, mas da pessoa real, de carne e osso, com sentimentos, contradições, dificuldades, aptidões e a sua diferença. E é neste ponto que, saudavelmente, precisamos olhar para questões tantas vezes negadas.
Quando desconhecemos e rotulamos as diferenças tomamos o caminho mais banal para a anulação da cidadania e deixamos de ver as múltiplas possibilidades, perspectivas e limites de cada um. Negação que acirra a intolerância e a discriminação em todos os níveis. Não reagir aos discursos já dados não desafia nenhuma norma, não inquieta ninguém e não muda nada. Cabe a nós, a partir da nossa diferença, subverter a ordem e recusar lugares pré-determinados. Só assim, quebraremos tabus que rondam o nosso cotidiano, criaremos relações agregadoras e libertárias, fundamentais para acabar com o preconceito.
Já passou da hora de eliminarmos fantasias e crenças que não dizem nada sobre nós. Apenas revelam a insensatez ou a ignorância de uma estrutura social que insiste em não entender o caminhar de uma pessoa com deficiência e não consegue ver que esta condição não a impede de ter vida pessoal, profissional e constituir família.
A deficiência não é uma sentença que afasta o indivíduo do trabalho e dos sonhos, até porque aptidões e limites são da condição humana.
A jornalista Mariana Baierle, no livro Maternidade e Deficiência Visual: do sonho ao nascimento de Natália (Editora Gregory, 2021), reitera esta luta tão necessária por acessibilidade e inclusão. Aborda estas questões com delicadeza e verdade, sem medo de mexer nas feridas que a discriminação muitas vezes abre e sangram. O conteúdo emociona pelo depoimento singular e firme da autora, uma mulher com deficiência visual que decide ser mãe. E tudo acontece em meio à pandemia do coronavírus, quando o cenário muda radicalmente e ficamos todos mais vulneráveis e mais sozinhos. Ao mesmo tempo, este cenário possibilitou que sua gravidez fosse cercada de muita reflexão, cuidados e carinho.
Mariana tinha plena consciência de que a sua vontade não era diferente da vontade de outras mulheres, sem problemas aparentes. Sabia que poderia ter dificuldades, mas não tinha dúvidas do seu querer e da sua disposição para cuidar de um filho/uma filha, ao lado do marido Rafael, também com deficiência visual, e de amar a criança incondicionalmente.
Mesmo questionada por muitas pessoas que ficavam espantadas com a sua gravidez, para ela a deficiência visual não representava um obstáculo. Mariana nasceu com um problema congênito, enxergando cerca de vinte por cento. E desde que soube do que teria que enfrentar para o resto da vida, não virou as costas para seus desejos. Pelo contrário, saiu em busca de entendimento, tratamento e de conforto para seguir estudando, trabalhando e realizando seus sonhos profissionais e pessoais. Caminhos que, ao longo da narrativa, ela mostra com sensibilidade, comentando cada momento da gravidez, até o nascimento tão esperado de Natália. Foram nove meses de descobertas, medo, ansiedade, alegria, acolhimento, adaptações e desafios, sublinhados pelo enfrentamento de preconceitos e estigmas, pela falta de informação, de acessibilidade e de empatia.
O resultado? A mãe Mariana Baierle renasceu com o nascimento da filha em 10 de junho de 2020, ainda mais forte, sem fantasias e sem idealismos, pronta para viver a maternidade na sua essência que, segundo ela, “desde a gestação, passando pelo parto e depois com o nenê nos braços, é real, com coisas boas e outras difíceis”. O pai de Rafael e a mãe de Mariana acompanharam tudo, assim como os amigos e demais familiares, mesmo à distância. Sobre essa redescoberta, Mariana reforça: “A mãe encontra dentro de si uma força, uma dedicação, uma capacidade de resiliência e reinvenção que jamais havia imaginado que existisse dentro de si”.
É por isso que eu não canso de repetir a frase da canção de Caetano Veloso “Dom de Iludir”: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Sabemos!
Fiz uma resenha do livro de Mariana em julho de 2021 e só tenho a agradecer o tanto que aprendi. Mariana e eu vivemos histórias semelhantes, como muitas que relatei no meu livro E fomos ser gauche na vida (Pubblicato Editora, 2020). Identidades que reforçam a certeza de que nossa luta é fundamental e não pode parar. Como ela me disse, “são livros com muitos diálogos, muitas histórias em comum, sem mesmo a gente se conhecer antes”.
Leiam o livro. Leiam Mariana Baierle, que também é editora do blog “Três Gotinhas”. Ativista pelos direitos das pessoas com deficiência, ela atua em muitas frentes, dá cursos e oficinas e organizou também o livro Histórias de Baixa Visão (Editora CRV, 2019).
Foto da Capa: Mariana, Rafael e Natália. Reprodução do Facebook