Kylian Mbappé tinha 19 anos quando foi escolhido o melhor jogador de França e Argentina realizada na Copa da Rússia em 2018. Nessa partida, em que os franceses eliminaram os argentinos após vencer por 4×3, o atacante fez 2 gols e, ainda, sofreu o pênalti que resultou em mais um gol dos bleu.
No Brasil, além da alegria costumeira pela eliminação dos nossos vizinhos do Mundial, a partida foi marcada pelo comentário de um youtuber, que, após uma arrancada fulminante do jovem negro tweetou: “Mbappé conseguiria fazer uns arrastão top na praia hein”. Após as críticas, a “celebridade” apagou o comentário e vieram as costumeiras negações que a fala tenha sido racista.
O caso vem ao encontro com o que Adilson Moreira cunhou como “racismo recreativo”:
“O conceito de racismo recreativo designa uma política cultural que utiliza o humor para expressar hostilidade em relação a minorias raciais. O humor racista opera como um mecanismo cultural que propaga o racismo, mas que ao mesmo tempo permite que pessoas brancas possam manter uma imagem positiva de si mesmas. Elas conseguem então propagar a ideia de que o racismo não tem relevância social. Não podemos esquecer que o humor é uma forma de discurso que expressa valores sociais presentes em uma dada sociedade.”
O racismo recreativo, conforme aponta Adilson, Professor Doutor pela Universidade de Harvard em Direito Antidiscriminatório, é um tipo de discurso de ódio que expressa desprezo pelas minorias sociais, reproduzindo estigmas que legitimam a discriminação, como a do jovem negro assaltante que praticaria o arrastão.
Ao mesmo tempo que a piada é ofensiva e extremamente racista, já traz embutida em si a desculpa para fugir da acusação de racismo ao se dizer que é apenas uma brincadeira. Nestes tempos que vivemos, ainda é capaz de ser dito que criticar a piada é uma concessão ao “politicamente correto” que limita a liberdade de expressão. Então, o agressor vira vítima, que está sendo punido por sua suposta “autenticidade” por gente que perdeu o senso de humor e “vê racismo em tudo”. Haja paciência…
Porém, Mbappé continua sendo um astro do futebol, jogando no PSG, time de sua cidade natal, Paris, ao lado de Messi e de Neymar. O craque já balançou as redes nessa Copa, na vitória por 4×1 sobre a Austrália, além de marcar os dois gols da vitória francesa sobre a Dinamarca.
Embalado no sucesso do jogador, o racismo recreativo voltou a campo, dessa vez em uma música da torcida argentina. Os hermanos acusam os jogadores negros da França de serem “todos de Angola”. Ao questionar a nacionalidade desses jogadores se igualam aos extremistas de direita como a família Le Pen, que veem apenas pessoas brancas como francesas. Afinal, como um negro tem a ousadia de dizer que é francês?
A canção também diz que Mbappé tem mãe nigeriana e pai camaronês, “mas no documento é naturalizado francês”. Ora, para o racista não basta o jogador ter nascido em Paris. Ele tem que ser colocado em seu lugar de africano e não pode reivindicar ser europeu.
Outra mostra do racismo da canção que provocou ultraje por todo o mundo é que a mãe do craque sequer é nigeriana. Fayza Lamari Mbappé, nasceu na França, defendeu a seleção francesa de handball e possui ascendência argelina. Mas, para um racista, tanto faz Nigéria ou Argélia, é tudo a mesma coisa, são todos africanos (ou angolanos, como diz a canção).
Na hierarquia perversa do racismo, assim como um francês “vale” mais que um argentino, um argelino (árabe) “vale” mais que um nigeriano (negro). Então, na cabeça racista, chamar a mãe dele de nigeriana é rebaixar ainda mais a ela e ao filho.
Ao mesmo tempo, o torcedor argentino se vê como inferior ou igualado ao europeu (nesse último caso, ele lembrará que ambos são brancos). Ao cantar, o racista pretende “devolver as coisas a seus devidos lugares”, pois o negro não pode desfrutar da igualdade com o argentino ou o francês, devendo ser lembrado que é um africano, portanto inferior nessa escala racial.
Mas não basta ser racista tem que ser transfóbico também. Assim, Mbappé é chamado de “puto” por “comer travestis”. As revistas de fofocas apontam que o atacante namora a modelo francesa Ines Rau, que fez história como a primeira modelo trans a ser capa da Playboy francesa em 2017. Assim, na linguagem da torcida, recheada de homo e transfobia, ele é apenas um puto e ela, um travesti.
Muitos dirão que é apenas uma música de torcida, uma brincadeira de adolescentes, buscando apagar a carga preconceituosa do cântico. É o racismo recreativo em ação, combinado com a LGBTfobia recreativa. Tudo uma grande piada para alguns.
Porém, tome cuidado, como diz Adilson Moreira: “Você é o que faz você rir”.