Lá nos primeiros anos 2000, quando a internet ainda parecia uma fascinante caixa de brinquedos e não havia se revelado como esta armadilha de algoritmos que sabemos que ela é hoje, chamou minha atenção um site muito engraçado chamado Kiss this guy. Era um blogue cooperativo alimentado pelos próprios leitores, que enviavam exemplos de algo que em inglês era chamado de “misheard lyrics” (letra ouvida errado ou letra mal ouvida) e que aqui no Brasil tinha uma certa tradição ancestral como “virundum”. A denominação brasileira provavelmente surge de uma piada que circulava na minha época de guri: um cantor famoso era recebido com pompa e expectativa numa modorrenta cidade de Interior porque se anunciava como o “Famoso Fulano, intérprete do VIRUNDUM”, e naquela noite o teatro, cinema, praça local (variava de acordo com quem contava a piada) lotava de cidadãos curiosos e ansiosos por conhecer o tal “virundum” de que ninguém havia ouvido falar. Finalmente, quando a ansiedade da plateia (e de quem ouvia a piada, claro) chegava ao máximo, o suposto famoso cantor aproximava-se do microfone, limpava a garganta e soltava a voz cantando o revolucionário novo estilo musical: “O Virundum piranga às marges prácidas”.
A conclusão da piada deixa claro o espírito daquele tipo de site que eu comentei no início: uma compilação bem-humorada de casos em que pessoas ouviam errado um trecho de uma música, atribuindo um novo sentido a um verso, às vezes absurdo, às vezes muito engraçado. O título do site gringo, “Kiss this guy”, refere-se a uma confusão muito comum em quem ouve, no inglês nativo, a letra de Purple Haze, de Jimmy Hendrix, na qual, ao fim da primeira estrofe, aparece o verso Excuse me while I kiss the sky (“Me dá licença enquanto eu beijo o céu”). A questão é que muita gente entendia na verdade Excuse me while I kiss this guy (“Me dá licença enquanto eu beijo esse cara”). O próprio Hendrix estava ciente desse tipo de confusão, e a reconhecia, de modo bem-humorado, e em vários shows dava um jeito de trocar a letra.
No caso brasileiro, um dos exemplos mais famosos a vir na cabeça de qualquer um é a famosa canção de Cláudio Zoli na qual, ao som de uma vitrola tocando blues, alguém ficava “trocando de biquíni sem parar” – esses mal-entendidos sonoros ocorrem e se perpetuam com canções que nunca foram ouvidas na íntegra, pra começo de conversa. Essa Noite do Prazer, por exemplo, acho que só fui entender que a vitrola “rolando um blues” na madrugada estava tocando BB King sem parar quando eu tinha uns 30 anos e alguém lembrou dessa música numa breve jornada de elevador até o térreo na redação e eu precisei reconhecer o vexame de que havia entendido a canção errado a vida toda (o fato de que eu achava a canção uma bosta e nunca havia prestado muita atenção nela podia ser um atenuante, mas não um salvo-conduto, porque a minha percepção estava factualmente errada).
Histórias coletivas
Aliás, num caso milagroso nestes tempos de internet móvel em que quase nenhum site das antigas existe mais, o Kiss this Guy ainda está no ar no endereço www.kissthisguy.com com praticamente a mesma programação gráfica dos anos 2000. A estrutura do site, como muitas outras iniciativas na época, incentivava a construção comunitária do conteúdo, com os próprios leitores subindo seus causos para o site preenchendo um formulário. E aí tínhamos coisas como o cara que dizia ter ouvido sempre She was a gay stripper (“Ela era uma stripper gay”) em vez de Daytripper, dos Beatles, ou Jeremy smoke on class today (“Jeremy fumou na aula hoje”) em vez de Jeremy spoke in class today (“Jeremy falou na aula hoje”), em Jeremy, do Pearl Jam.
Há que se entender também as “condições materiais” nas quais vicejava esse tipo de equívoco. Muitas dessas dúvidas surgiam de ouvir as músicas tocadas aleatoriamente em rádios mal sintonizadas em horários incertos e passados muitos anos. Não havia outras fontes oficiais para saber o que uma letra dizia que não o encarte do álbum, e muitas vezes mesmo as revistinhas de cifras para violão ou as de “letras traduzidas” que foram sucesso de vendas nos anos 1980 vinham com a letra errada.
Hoje, com o Instagram e o TikTok, com muitos sites específicos dedicados somente a letras e a letras traduzidas e com a facilidade com que qualquer dúvida desse tipo pode ser dirimida numa simples consulta ao Google, esse tipo de conteúdo parece ter desvanecido, substituído por uma coisa parecida mas diferente, as brincadeiras com “tradução fonética literal”, quando se ouve uma música em um idioma e aquilo parece estar falando uma outra coisa, noutra língua. Como escutar o Led Zeppelin cantar “Uhhh, cês são loucos, cês não votam no Lula” no meio de Rock and roll, o Creedence Clearwater Revival abrir Have you ever seen the rain com “João botou o melão no Gol” ou uma das gurias do ABBA largar um “vá lavar seu cu” no meio de The winner takes all. Também acho esse tipo de coisa muito engraçada (sim, meu humor é abobado), mas como nesse caso você está ativamente traduzindo errado com base na fonética, o apelo me parece outro. Você sabe desde o início que a tradução só pode ser piada, quando no caso dos “cantando errado” é até possível que durante anos alguém tome a sua versão particular e equivocada como a verdadeira.
Mas, como eu explicava o funcionamento do Kissthisguy.com, deixe-me concluir: o site era alimentado com histórias dos próprios leitores, e cada submissão era feita com o sujeito que compartilhava o seu “misheard” ou o seu “virundum” respondendo algumas perguntas: com que idade a pessoa descobriu que cantava errado, se já havia conseguido convencer outras pessoas de que aquela era a versão certa e, para mim, a pergunta central dentre as feitas pela organização do site: “Acha que a sua versão era melhor do que a original?”
Melhor que a original
Porque o que fascina nesse tipo de equívoco sonoro do qual somos muitas vezes despertados a contragosto quando nos informam a versão certa da letra é que o verso, como o ouvíamos, despertava um tipo de associações pessoais e imaginativas diferentes dos provocados pelo original. E é essa associação uma das coisas que acho mais ricas no poder de expressão de uma letra (quando devidamente acompanhada de sua melodia, claro. Na brancura morta de uma página em papel, muitas vezes a letra não consegue expressar direito nem aquilo que de fato deveria, basta olhar para alguns desses tristes e meio picaretas volumes de Todas as Letras de Fulano que algumas editoras andaram jogando no mercado).
Como qualquer forma de poesia propriamente dita, a boa canção se comunica por meio de uma concentração radical de linguagem, e esse é um dos grandes motivos pelos quais cada verso desperta associações e imagens na cabeça de cada ouvinte que escuta e produz seus próprios sentidos e contextos para cada novo verso, nova estrofe, novo refrão. E quando esse tipo de associação livre e imaginativa se dá em cima de um material que foi ouvido com um leve equívoco, os resultados podem ser muito engraçados. E, de algum modo bizarro, podiam fazer mais sentido.
Meu pai, por exemplo, que morreu há exatos 31 anos neste mês, era um cara das antigas que curtia Lupicínio, música gauchesca e clássicos da seresta, então via com certa antipatia o Rock Brasil que a minha geração estava descobrindo na primeira metade dos anos 1980. Achei que fosse só esse o motivo pelo qual sempre torcia o nariz e fazia algum comentário mais do que desagradável, desagradado, quando começava a tocar a canção Fixação, do Kid Abelha, nas rádios. Um dia descobri, tendo frouxos de riso, que ele entendia os versos “Fixação: fantasmas no seu quarto“, como “Menstruação: tem sangue no seu quarto“, e achava aquilo meio vulgar.
Meus enganos
Quando eu tinha uns 13, 14 anos, fez sucesso no Brasil uma canção chamada Carta aos Missionários, da banda Uns e Outros. Era o típico rock de protesto bastante comum naquele período e cujo exemplo máximo conhecido até hoje são algumas canções do Legião Urbana, como ‘Que país é esse?’ Na letra havia umas imagens revoltadas nas quais se dizia, basicamente, que o mundo estava indo pra vala devido ao assédio inquieto que, dos quatro cantos da Terra, promoviam sobre ele a morte, a discórdia, a ganância, a guerra. Era uma canção cheia de fúria e com um ponto de vista algo pessimista e apocalíptico cuja última estrofe eu conseguia entender (versão Shopee do Renato Russo, o cantor da banda alternava um vozeirão de barítono com momentos em que simplesmente mastigava a letra): Vindo de todas as partes / Indo pra lugar algum / Assim caminha a raça humana / Se devorando um a um / Gritei para o horizonte / Ele não me respondeu / Então fechei os olhos, e A PAZ assim me bateu.
Considerando que era uma música cheia de ressonâncias bélicas e críticas a combates, batalhas e violências, eu achava razoavelmente inspirada essa conclusão na qual, após falar de guerra, de “crianças matando / crianças inimigas”, de “generais de todas as nações”, o assim chamado “sujeito-lírico” terminava, talvez, nocauteado ou agredido pela PAZ. Parecia ambíguo, entre o esperançoso e o melancólico.
Não sei dizer exatamente quando eu descobri que no original, valendo a letra, dizia “Então fechei os olhos, e SUA VOZ assim me bateu”. Eu não diria isso, claro, de uma música de Chico, Gil, nem do mala do Caetano, mas no caso DESSA letra eu tenho certeza de que a minha versão era melhor. A “sua voz” que tu fala é de quem, meu filho? Tu passou o tempo todo descrevendo imagens desesperançadas, o único pronome anterior é quando tu junta o teu desespero com o do ouvinte falando em “nossa história”. E aí tu vai e enfia um “você” que não tinha aparecido antes. Ou pior ainda, a voz é do horizonte, que muda de ideia depois de dois versos antes não ter respondido? Essa coisa de sair usando possessivo amplo assim é traumático… Quebra completa da narrativa tornando os versos coisas meio aleatórias.
Outro exemplo se deu quando eu estava vivendo a vida perdida de estudante depois de me mudar da modorrenta e apática cidade do Interior em que cresci para uma Porto Alegre em que havia, na época, mais alegria, mais música, menos caretice e menos espírito de idoso comedor de bolacha Maria de roupão e pantufas às oito da noite. Foi mais ou menos na mesma época em que o Cidade Negra alcançou considerável sucesso com uma canção chamada Minha Irmã, que falava de misticismo e espiritualidade ancestral, misturando jogo de búzios, tarô, benzedura e encerrava com um verso que pra mim fazia algum sentido, embora estranho. A forma apressada com que o vocal de Toni Garrido acelerava a letra no fim da famosa estrofe “Ah, meu Zumbi, Ah, meu Jacó”, me fazia ouvir “Ai, ai, meu Deus, Benze Melissa“.
Nessa época, eu já havia abraçado meu agnosticismo pragmático/ateísmo político (detalhes aqui), mas julguei que poderia ser apropriado alguém benzer a “melissa”, a planta de fundo de pátio, claro, e não a sapatilha com cheiro de Chiclete na época ainda bem famosa. Até porque ele já fala em benzer antes (ou seria “bem ser”? Quando a gente começa a pensar muito nessas coisas, de repente parece que as certezas voam pela janela). Só muito tempo depois eu descobri que o verso original era “ouvir “Ai, ai, meu Deus, pense neles só“. Quer dizer, acho que seja “neles”, no plural, porque faz sentido, sendo a retomada do “Zumbi” e do “Jacó” mencionados antes. Mas achei em sites versões com a frase pense nele só, que faz muito menos sentido. Aliás, outra coisa que ocorreu com a marcha do tempo e da internet: não parece mais que muitos artistas estejam interessados em manter um site oficial com esse tipo de informação, como era no início da internet, a maioria se contenta com perfis de redes sociais em que o objetivo é mais provocar engajamento imediato, não o de ser uma instância certificadora para algo tão banal…
Imaginações alternativas
Há ainda uma outra modalidade de associações entre sua imaginação e uma música provocadas por um impulso ou entendimento equivocado. Aquele que se dá quando você só sabe uma frase de uma música, ela está certa, mas você pensa que ela é sobre outra coisa, ou acha que ela conta outra história, e talvez até se decepcione ao perceber o quão errado estava.
Tendo passado a juventude ouvindo um tipo de som mais pesado, mais agressivo e com mais raiva no coração, sempre achei o som da Cidadão Quem muito limpinho e mediano pra mim, mas eles eram uma referência secundária no rock contemporâneo quando eu estava na universidade, falava-se deles com alguma frequência, suas músicas tocavam em festas e a chatonilda Carona tocava bastante nas rádios do período (embora, agora que parei para pensar nisso, não me lembro em quais rádios, porque também tinha isso. Eram tempos de mais estações de rádio identificadas com uma ou mais vertentes do rock, e algumas o misturavam com o pop e o techno do período, como a Atlântida, e outras eram muito mais puristas, como a Felusp. O panorama mudou tanto que hoje praticamente só ouço Antena 1 quando ouço rádio).
Voltando: foi nessa época que eles lançaram seu hit afetivo gaúcho Pinhal, do qual eu por muito tempo conheci apenas quatro versos: o refrão “E agora o Pinhal / não tem mais a gente lá” e “Ela se formou há pouco tempo / quem tocou na formatura fui eu“. E na minha cabeça, provavelmente por ter crescido na casa de um fã de seresta e de canções melodramáticas de dor de corno, apenas esses dois pedaços da canção formavam um drama coerente de um cara cantando a saudade de alguma guria que conheceu, namorou, não deu certo e no fim, com um senso romântico de ironia, ele, músico, precisou tocar na formatura de seu antigo par, o que provocava ainda mais tristeza por eles dois não irem mais juntos pro Pinhal etc. Eu sei, tudo viagem da minha cabeça, uma sugestão tênue provocada pela escassa informação que eu tinha nesses dois únicos fragmentos. E, como comentei, nunca fui fã da Cidadão Quem, então não é como se eu fosse o público-alvo da banda e tivesse o disco em casa, e ouvisse o tempo todo, etc.
Um dia, lá por 2010, acho, fui convidado para falar do meu livro Tudo o que Fizemos (que, aliás, deve ganhar reedição este ano, falo nisso quando acontecer) numa feira literária do Interior do RS. O evento, realizado em um ginásio poliesportivo, foi muito bacana, e a mesa da qual participei foi logo antes da de Duca Leindecker em pessoa, que estava lá para falar de seus livros A casa da esquina e A favor do vento. Duca, bastante simpático e gentil com os jovens que o crivavam de perguntas, havia levado seu violão e cantava partes de suas canções, que acabaram virando o centro da conversa. E contava um pouco das histórias de bastidores de suas composições. Não fiquei nem um pouco mais inclinado a ouvir a banda depois disso, mas fica aqui minha admissão oficial de que Duca me pareceu um cara legal e era um grande e afetuoso contador de histórias. E foi só aí que eu ouvi Pinhal inteira e descobri que era uma canção na qual Duca recordava veraneios de família e o romance de seu irmão com sua cunhada. Sem nada do conflito que eu havia imaginado na minha própria versão particular.
Se eu acho que a música que eu imaginei era melhor do que a original? Claro que sim, porque eu mesmo nunca soube direito como era essa música da minha imaginação, ela criou toda uma história que floresceu simplesmente por associações com os poucos versos que eu de fato sabia. Se ela existisse, não teria sido talvez melhor do que a do Duca, que está aí para todos ouvirem e criarem suas próprias pirações em cima.
Assim, na próxima vez que você descobrir que vinha há anos entendendo uma canção errado, não se sinta decepcionado. Veja pelo lado do tempo de imaginação alternativa que esse equívoco trouxe.
Todos os textos de Carlos André Moreira estão AQUI.
Foto da Capa: Divulgação