À época da minha graduação, reza a lenda que uma colega colocou uma receita de bolo no meio de um trabalho. A ideia era provar o ponto de que nem todos os professores liam nossas tão esmeradas páginas. Eu não vi e até hoje não sei se realmente ela teve coragem. Sei que eu nunca teria, o que não quer dizer que não tenha tido vontade. Mistério e neurose.
Recentemente, inventei uma receita de torta salgada. Como não sou “de mesquinhar” com essas coisas, vou logo contando e assim gasto um pouco daquela vontade de rebeldia que ficou no passado estudantil. Compre ou faça a massa. O recheio é repolho roxo refogado na cebola, pimentão vermelho, pimenta preta. Depois, ameixa seca picada, queijo gorgonzola, forno médio e corre para o abraço. Quantidades a gosto. Tempero com temperança vem bem.
Cozinhar tem sido uma das formas de amar mais constantes. Não que eu cozinhe todos os dias, mas, quando o faço, costuma me dar muita alegria alimentar o povo de casa. É um veículo, uma expressão de amor tão transitada quanto efetiva. Cozinhar e criar esses momentos à mesa serve para gerar memórias e gestar o comum de nossos dias. Creio que é por isso que costumo lembrar das pessoas amigas e familiares pelas suas grandes receitas. É comum me encontrar com pessoas que tenham as receitas do coração ou suas “marcas registradas”. Ontem tive saudades do bolo de laranja da minha mãe ou da própria. Não lembrava da receita. Alô, mãe!
Hoje falaram em pavê na mesa – me dou conta de que a receita é mais brasileira do que pensava – e a minha avó fazia um maravilhoso. Alguém sempre fazia a infame piada, é claro. Às vezes, ela mesma. Essa é uma receita deduzida, porque ela nunca me passou no detalhe. Quer dizer, ela parecia não querer perder aquele protagonismo. E é verdade, aquele pavê é muito difícil de reproduzir, assim como a massa de pastel que a minha bisavó fazia. São recordações, afetos e memórias que vamos recuperando por fora dos nossos arquivos digitais e nuvens.
Nenhuma receita de internet, por melhor que seja, vai poder construir esses laços. É família, é origem e cultura. Por falar nisso, para construir este texto estive a ponto de enveredar o foco para a miséria do mundo, mas o que está acontecendo na Palestina me dá mais revolta do que palavras, então, por enquanto, melhor calar. Há guerras, sim! Faz tempo? Faz. Mas, neste exato momento, há um massacre e uma limpeza étnica em curso e já não é mais possível ignorá-la. Em todo o caso, minha tergiversação de hoje é o rodeio que toda pessoa deveria ter como direito. Escolher o que comer, como comer, com quem comer. É tão gostoso, tão básico e tão humano.
O que você achou desse texto? Gostou? Então, você pode comentar ou apoiar financeiramente meu trabalho com a Apoia.se. Além de reconhecimento, seu apoio melhora minhas condições de sustentar este e outros projetos de escrita. Clique no link abaixo. Obrigada.
Todos os textos de Priscilla Machado de Souza estão AQUI.
Foto da Capa: Freepik