A primeira matéria que tive publicada em jornal, em 1981, se tornou simbólica para mim, uma semente da compreensão que desenvolvi de jornalismo e sociedade. Foi sobre uma reunião que seguia o método desenvolvido pelo médico e psicanalista húngaro Michael Balint, na década de 1950, em Londres, na Inglaterra. Assisti à discussão do grupo conduzida pelo professor Dr. Milton Abramovich (1933–2001) na 37ª enfermaria da Santa Casa de Misericórdia, onde era também diretor do Serviço de Medicina Interna. Cheguei lá por intermédio do meu irmão, Carlos J. S. Moreira, estudante/estagiário de Medicina. O veículo foi o mítico Coojornal, da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, onde eu começara trabalhando no Arquivo e depois passei a secretariar a diretoria na redação, enquanto cursava Jornalismo na Famecos/PUCRS.
O método Balint de diálogo sobre experiências clínicas se tornou referência no meio acadêmico. Balint (1896-1970) reunia em torno de 14 profissionais da saúde – médicos, enfermeiras, psicoterapeutas – na Tavistock Clinic para estudarem casos clínicos apresentados por um dos participantes. A discussão entre todos se concentrava no relacionamento médico-paciente, buscando identificar os sentimentos que o doente desperta neles próprios, profissionais de saúde. Esse método do diálogo em grupo não tem a pretensão de explicar ao médico como tratar o seu doente, mas perceber a relação existente entre os dois, a fim de compreender o que representa. As relações entre médico e paciente terminam frequentemente quando estes não se compreendem mutuamente. Balint proporciona formas de compreensão, assim como possibilidades de comunicações terapêuticas positivas com os doentes. O conceito básico e primordial neste processo é que todos os médicos têm respostas habituais para cada tipo particular de pacientes e seus problemas. Cada exercício médico tem certas exigências recorrentes e seus dilemas. A discussão num grupo Balint estimula os participantes a examinar as suas abordagens individuais e as circunstâncias existentes; e ajuda a explorar caminhos alternativos para respostas melhoradas.
Dr. Abramovich, então professor na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vivenciara o método por dois anos e meio na Tavistock, em Londres. De volta ao Brasil, aplicou Balint com seus estagiários, mostrando que esse tipo de grupo de trabalho se organiza livremente de acordo com um objetivo comum, no qual cada integrante compartilha consciente e lucidamente da responsabilidade coletiva. “É melhor ver com vários do que sozinho”, afirmava Dr. Abramovich, que também mantinha uma relação de amizade com vários integrantes do grupo, recebendo-os em sua casa. Participei inúmeras vezes desses encontros criativos e construtivos. A premissa da visão de grupo, aplicada às reuniões, prepara melhor o médico para a realidade de que, enquanto o médico pode curar doenças, pode não estar curando pessoas. É importante ressaltar que todo adestramento proposto em Balint era – e continua sendo – empreendido como um complemento paralelo e adicional ao aprendizado médico formal e nunca como um substituto do mesmo.
No final do século XIX, o Dr. Joseph Breuer, médico e fisiologista austríaco, já observara que todo paciente gostava secretamente de um exame microscópico de sua vida, o que o levou à “terapia de cura através da conversa”, indo além da entrevista clínica para dar o start da psicanálise. Breuer dizia que quanto maior o poder de ampliação, mais o paciente gostava. A alegria de ser observado era tão arraigada que o médico acreditava que a verdadeira dor da velhice, do luto, de sobreviver à família e aos amigos estava na ausência de escrutínio: o horror de viver uma vida inobservada. Essa é uma verdade tão contundente que muitos pacientes nos consultórios – não só de psiquiatria –, especialmente os mais idosos, confessam abertamente que só de conversar com o médico já se sentem melhores. Estudos com placebo nos EUA confirmam essa premissa: pacientes que tiveram maior alívio com pílulas de açúcar foram aqueles que receberam o maior cuidado dos médicos; e mesmo em uma pesquisa na qual os pacientes foram informados de que tomariam drogas falsas e inertes, mas o médico lhes dava atenção e explicava o porquê de os placebos apresentarem efeitos curativos, os pacientes descreveram melhora real, relatando duas vezes mais alívio de sintomas que o grupo sem tratamento com placebo.*
Um bom exemplo é o Japão. Com sua cultura desenvolvida sobre bases antigas de leis militares, disciplina (supervalorizam o respeito e o silêncio) e extremo perfeccionismo, o país resultou numa força ímpar de trabalho – é dos mais industrializados do planeta, com as mais avançadas técnicas e tecnologias. Mas resultou também numa sociedade que não sabe ouvir o outro e cala as pessoas. Em saúde, este é um problema especialmente grave. O Dr. Emílio Moriguchi foi convidado a desenvolver um programa na Faculdade de Medicina da Universidade de Yokohama e observou que lá os hospitais são igualitários para toda a população, rápidos e extremamente eficientes: enfermagem, sinais vitais, simultaneamente checklist no computador, exames a serem realizados, direto para o laboratório, resultado em mãos para o médico avaliar e, se necessário, já pedir outros exames de imediato. “Só que o paciente não tem espaço sequer para um breve diálogo com o médico e, assim, não pode falar dos seus medos, suas angústias, de nada. Em muitos casos, as alterações de saúde do paciente são consequência de questões psicológicas que enfrenta e, se não consegue dialogar, não consegue resolver”, diz Dr. Moriguchi.** Os japoneses, assim, passaram a buscar no Ocidente um modelo de relação médico-paciente para seus estudantes de medicina e enfermagem. É também troca, pois o Ocidente já aprendeu muito com o Oriente.
Se estendermos essa compreensão para a sociedade, constatamos que a falta de diálogo nos afeta, nos faz falta. Diálogo de verdade, de interesse real entre as pessoas, diferente da interação geralmente superficial das redes sociais, que são mais distração do que conexão. Grupos de discussão, de troca de informações e impressões pessoais e profissionais, são formas poderosas de convívio social, de construção de conteúdo. Desde reuniões informais ou comunitárias até dentro das universidades, ou os Think Thank, que têm o objetivo de pensar/contribuir na busca de alternativas para tantos desafios que enfrentamos. Aquela matéria para a Coojornal gravou essa impressão em mim, na época não totalmente consciente, pois eu era uma garota de 19 anos ainda descobrindo o meu caminho. Mas encontrou ressonância no que eu já aprendera com minha saudosa mestre e diretora da cooperativa, Rosvita Saueressig Laux, de que, ao pensar/escrever, devemos abrir o leque do assunto, associando informações e conhecimentos variados, nossas bagagens culturais e emocionais e de tantas outras pessoas quanto for possível acessar, assim como sobre lugares, viagens, etc. Pode parecer astronômico ou pretensioso, mas basta praticar para que vá acontecendo naturalmente. E resulta também num poderoso método de aprendizado, constante e gratificante. Por isso, é sempre estimulante participar de grupos de diálogo, que podem acontecer também através da escrita. Esta plataforma Sler serve de exemplo, pois é notório que nossas colunas conversam entre si e com os leitores. Vejo (sinto) claramente o quanto todos os colunistas buscam dar o melhor de si nos seus textos e, assim, cooperamos diariamente uns com os outros.
*The Placebo Phenomenon. An ingenious researcher finds the real ingredients of “fake” medicine. Harvard Magazine, 2013.
** Um dos maiores especialistas em saúde do Brasil, é filho e herdeiro natural dos ensinamentos do mestre Yukio Moriguchi, o pai da geriatria no Rio Grande do Sul. Entrevista com Dr. Emílio Moriguchi no caderno Donna, Zero Hora (01.11.2015).
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Foto da Capa: Fotomontagem com acervo digital NUPECC Famecos/PUCRS