Não faltavam motivos para questionar a ida à Escola Estadual Evarista Flores da Cunha, em Belém Novo. Chovia forte e o Uber custou a aceitar a corrida para um bairro tão distante. O trajeto longo e demorado, previsto para quarenta e cinco minutos, foi estendido em mais vinte, por engarrafamentos ruidosos. O rádio do carro contava os horrores da guerra, sem contar os das opiniões sobre ela. Ainda era cedo e os pesadelos da noite gritavam, manhã adentro.
Tudo isso desapareceu, diante da expressão da primeira criança disposta a ouvir uma história. Conta essa, O Boto do Arroto. Conta aquela, O Caminho do Pintor. Contei as duas. Ouviu. Ouviram, em meio ao milagre de um encontro em torno de uma história que esparge distâncias, guerras, engarrafamentos. A vida ali acende. Reacende. Encontra novos sentidos, quando um só já bastaria.
Depois as perguntas mantêm a intensidade do momento. Por que escrevo? Por que escrever? Quantos livros? Qual o preferido? A idade? Todas as respostas já são dispensáveis, porque as perguntas continuam acesas, mas o Gabriel preferiu contar. Contou que agora queria ser um escritor e, um dia, eu encontraria um livro seu, na estante de uma livraria.
Aí comecei a imaginar em voz alta sob os olhares espantados das crianças: Gabriel, estou me vendo daqui a alguns anos, passeando de braços dados com a minha velha, os dois passando por uma livraria e vendo um livro teu, exposto na vitrine. Digo que conheço aquele autor. Ela não acredita, mas tenho o número do teu telefone e te ligo ali, na hora mesmo. O que tu me respondes?
Gabriel está no jogo e responde que ela pode acreditar: não só nos conhecemos como eu fui o primeiro escritor que ele conheceu, faz muitos anos, na sua escola, a Evarista Flores da Cunha, em Belém Novo.
Depois dos aplausos efusivos para ele, há uma despedida calorosa e a certeza de que nada poderia ser mais importante do que aquele encontro, por mais que continue chovendo forte e aplicativo nenhum aceite a longa corrida prevista para a volta.
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