Na semana passada completou-se quatro décadas da classificação dos remanescentes do antigo povo de São Miguel Arcanjo das Missões Jesuíticas de índios Guarani, dos séculos XVII e XVIII, como “Patrimônio Cultural da Humanidade” pela União das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Curiosamente a imprensa regional deu pouca ênfase ao assunto. No principal jornal da capital sul-rio-grandense, a data não passou em branco graças a sensibilidade de um de seus colunistas, que na edição de 9 e 10 de dezembro, através da colaboração do arquiteto Luiz Antônio Bolcato Custódio (1953), lembrou seus leitores da importância do bem cultural e de seu reconhecimento pela entidade vinculada à Organização das Nações Unidas.
Para esclarecer o leitor, a criação de uma “Lista do Patrimônio Mundial”, pela UNESCO, surge com a “Convenção sobre a salvaguarda do Patrimônio Mundial, cultural e natural”, proposta na décima sétima sessão da Conferência Geral da UNESCO, ocorrida em Paris, de 17 de outubro de 1972 a 21 de novembro de 1972. No dia 16 de novembro de 1972 o documento foi aprovado. No seu artigo 8, item 1, ficou criado junto à instituição um órgão intergovernamental para proteger o patrimônio cultural e natural de valor universal excepcional, denominado “Comitê do Patrimônio Mundial”. No artigo 11, ficou acertado de que cada um dos Estados partes da convenção, apresentaria, na medida do possível, ao comitê um inventário dos bens situados em seu território que pudessem ser incluídos numa lista de bens de excepcional valor universal conforme os critérios que viriam a ser estabelecidos. Estabeleceu-se que a inclusão de um bem na “Lista do Patrimônio Mundial” só seria aceita com o consentimento do Estado interessado. No item 4 do mesmo artigo 11, decidiu-se também criar a “Lista do Patrimônio Mundial em Perigo”, para incluir os bens ameaçados de desaparecimento devido a perigos sérios e concretos, visando reverter a situação.
Na medida que foi sendo implementada a Convenção sobre a salvaguarda do Patrimônio Mundial, cultural e natural, os países membros passaram a apresentar a candidatura dos bens de interesse para constar na Lista do Patrimônio Mundial. Para tanto, tiveram que montar dossiers pormenorizados sobre os mesmos, que foram submetidos ao Comitê do Patrimônio Mundial. Uma vez aprovados (nas sessões da Conferência Geral da UNESCO), estes bens foram incluídos na lista.
O Brasil aderiu à Convenção do Patrimônio Mundial no ano de 1977. Em 1980, a cidade mineira de Ouro Preto foi o primeiro bem brasileiro listado, seguida pela pernambucana Olinda, incluída em 1982. São Miguel das Missões, como é conhecido o sítio arqueológico gaúcho, foi o terceiro bem cultural brasileiro a ser registrado na lista.
Custódio, que trabalhou na representação regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), afirma que o processo foi desencadeado por iniciativa do representante do IPHAN no Estado do Rio Grande do Sul, arquiteto Júlio Nicolau Barros De Curtis (1929-2015), “ao avaliar a estabilidade das estruturas da antiga igreja, considerando a inclinação da sua fachada. Foi solicitada uma consultoria especializada à UNESCO, que enviou o engenheiro italiano Roberto Di Stefano (1926-2005). A visita se deu nos dias 26 e 27 de abril de 1982. Ele descartou o risco de queda e sugeriu um conjunto de providências necessárias à preservação desse bem cultural. Em São Miguel, Di Stefano afirmou que suas ruínas tinham ‘tanta importância para a América quanto o Partenon para a cultura grega’, sugerindo que fossem indicadas ao Patrimônio Mundial” (CUSTÓDIO, 2023, p. 42). Em 16 de dezembro de 1982 o Brasil, através do jornalista pernambucano Marcos Vinícios Vilaça (1939), Secretário de Cultura do Ministério de Educação e Cultura, encaminhou o dossiê para a candidatura de São Miguel das Missões, amparado no artigo 1 da Convenção sobre a salvaguarda do Patrimônio Mundial, cultural e natural, que define “patrimônio cultural”. Custódio lembra que foram incluídos os documentos que asseguravam a proteção legal e o compromisso de conservação do bem: o comprovante de tombamento dos remanescentes como monumento nacional pelo IPHAN (inscrito pela Subsecretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 16 de maio de 1938 sob o número 63, à folha 12, do Livro do Tombo das Belas Artes, processo número 141 – T, de acordo com o Decreto-lei número 25, de 30 de novembro de 1937, que organiza a proteção dos bens culturais no Brasil) e o Plano Diretor de São Miguel das Missões (1979). Com base no dossier apresentado, o Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios (ICOMOS), organização não-governamental associada à UNESCO para avaliar as candidaturas dos bens a serem incluídos ou não, na Lista do Patrimônio Mundial, aprovou a inclusão de São Miguel das Missões, vinculada às demais missões jesuíticas da América Latina. A oficialização da inscrição ocorreu em 9 de dezembro de 1983, na sessão realizada pela UNESCO em Florença, na Itália. Na oportunidade, São Miguel das Missões foi declarada Patrimônio Cultural da Humanidade junto com o Taj Mahal, na Índia, Machu Picchu, no Peru, a Babilônia, no Iraque, e o Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa, Portugal. Naquela ocasião, a Argentina informou que indicaria os remanescentes dos sítios missioneiros jesuítico-guarani de San Ignacio Miní, Santa Maria – La Mayor, Santa Ana e Loreto, que foram incluídos em 1984. No ano de 1993, o Paraguai apresentou as candidaturas de Jesús e de Trinidad, que também foram aprovadas. Assim, o conjunto ficou registrado como Missões Jesuíticas dos Guarani.
São Miguel Arcanjo, cujo auge se deu entre a sua fundação, em 1687, e a expulsão definitiva dos jesuítas pela coroa espanhola, em 1768, entrou em decadência, culminando com o abandono resultante da Campanha de José Fructuoso Rivera (1789-1854), na Guerra Cisplatina (1829), às missões em território brasileiro. Por quase um século, o abandono de São Miguel foi total. Dentre aqueles que testemunharam o que ocorreu, destacou-se o viajante francês Alfred Demersay (1815-1891), que visitou o Paraguai, Argentina e Brasil (1844-1847), e chegou a documentar graficamente o início do arruinamento na gravura que elaborou em 1846.
Para que se preservassem os remanescentes de São Miguel das Missões, um considerável número de dirigentes e de técnicos tiveram papel fundamental. A eles é dedicado este artigo.
Em ordem cronológica, a primeira ação empreendida para reverter o quadro de degradação foi iniciativa do Governo do Estado, na época liderado por Antônio Augusto Borges de Medeiros, através da Divisão de Colonização e Terras do Estado do Rio Grande do Sul, da Secretaria de Obras Públicas. Entre 1925 e 1927, o engenheiro João de Abreu Dahne, chefe da Comissão de Terras, com sede no município de Santa Rosa, erradicou a vegetação que cresceu entre as fiadas de pedra, assentadas por barro, e realizou reparos gerais, incluindo a reconstrução do pórtico e o escoramento com trilhos de ferro, especialmente nas aberturas, na fachada principal, nas arcadas e na torre da igreja.
Logo após a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN (1937), hoje IPHAN, na época dirigido pelo advogado mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969), foi incumbido de realizar uma inspeção nos remanescentes missioneiros, o arquiteto Lucio Costa (1902-1998). Acompanhado de sua esposa, Julieta Modesto Guimarães (1905-1954), dona Leleta, do jornalista e escritor gaúcho Augusto Meyer (1902-1970) e de um engenheiro designado pela Escola de Engenharia de Porto Alegre, Lucio visitou seis dos sete povos missioneiros estabelecidos pelos jesuítas entre 1682 e 1768. Só não foi a São Borja em decorrência das chuvas ocorridas na primavera daquele ano. Da visita resultou o relatório, elaborado no seu retorno ao Rio de Janeiro, em novembro, que definiu as ações que viriam ser empreendidas: estabilizar os remanescentes da igreja do antigo povo de São Miguel Arcanjo e implementar um museu, a ser construído com material das ruínas e também abrigado nas próprias ruínas, reunindo esculturas e fragmentos de arquitetura dispersos naquela região. Para concretizar o intento, foi deslocado da capital federal o arquiteto Lucas Mayerhofer (1902-1982), que entre 1938 e 1940, realizou as obras necessárias para consolidar as ruínas do pórtico e da torre da igreja, reforçando os alicerces e desmontando e remontando as partes danificadas. Mayerhofer foi incumbido também de construir o Museu Nacional das Missões, proposto e concebido no relatório de Lucio Costa. Importante destacar as dificuldades encontradas por Dahne e Mayerhofer, considerando a inexistência de estradas e vias que hoje facilitam chegar ao local. Foram verdadeiros heróis se considerarmos os resultados, especialmente os atingidos pelo trabalho do segundo.
Entre setembro de 1954 e março de 1955, foram realizadas novas obras, conduzidas pelo arquiteto Maurício Dias da Silva. Procedeu-se a limpeza das paredes das ruínas e roçado do interior da igreja, retirada de entulho para se chegar ao nível primitivo do piso da nave da igreja, recomposição e limpeza do dreno existente no interior desta, recomposição de arco de descarga de um vão de janela e de pequenos trechos do maciço, e construção e instalação de sala de exposições no interior das ruínas da igreja, aproveitando parte da parede lateral da mesma, do lado do evangelho para apoiar a estrutura metálica envidraçada da construção (LEAL, 1983, p. 81 e 83).
Entre 1967 e 1970, novas obras foram realizadas após a inspeção realizada pelo arquiteto Júlio Nicolau Barros de Curtis. Foram obras de caráter estrutural, com a inserção de vigas de concreto armado no interior da frontaria da igreja e sobre o respaldo das arcadas da nave, seguindo proposta do engenheiro pernambucano Joaquim Cardoso. Também foi feito o capeamento dos respaldos da maior parte das estruturas dos remanescentes da igreja, do colégio e das oficinas da antiga missão. Neste momento foi demolida a sala de exposições feita entre 1954 e 1955, na nave lateral da igreja. O acervo até então ali exposto, foi transferido para a primitiva sacristia, que recebeu um forro de madeira recompondo a forma da abóbada original e uma cobertura de alumínio. As intervenções foram realizadas sob a direção do arquiteto paulista Luís Saia (1911-1975), na época chefe do 4º Distrito do SPHAN (CUSTÓDIO, 1994, p. 10).
No ano de 1974, foi feito um levantamento gráfico do sítio de São Miguel das Missões. Saia enviou os estudantes de arquitetura da Universidade de São Paulo, André Righi, Antônio Luiz Dias de Andrade (1949-1997), José Saia Neto (1949-2021), Júlio Abe Wakahara (1941-2020) e Odair Carlos de Almeida para realiza-lo.
No início do ano de 1980, uma medição do desaprumo da frontaria das ruínas da igreja desencadeou o processo que resultou nas obras ocorridas entre 1981 e 1987, diga-se de passagem, importantes, mas inacabadas. Júlio de Curtis buscou o apoio institucional e consultoria da UNESCO, efetuada pelo engenheiro Roberto Di Stefano. Para dar início aos trabalhos, foi contratada a empresa RESCON, de Salvador, tendo a frente, Fernando Machado Leal, o condutor destas obras. Leal lembra que o Termo de Referência, datado de 7 de agosto de 1980, elaborado com a assessoria de Roberto Di Stefano, serviu de roteiro básico para a realização dos estudos, que demandaram ano e meio de trabalho (LEAL, 1984, p. 84). Desta etapa fizeram parte a análise histórica do monumento, um levantamento gráfico minucioso, exemplar, realizado pelo arquiteto Odair Carlos de Almeida, contando com a participação do arquiteto Luiz Antônio Bolcato Custódio, levantamento fotográfico, levantamento fotogramétrico da frontaria e da torre (feito pela empresa Aero-sul S. A.), análise dos materiais constitutivos dos maciços das paredes (realizada pela Fundação Universidade – Empresa de Tecnologia e Ciência – FUNDATEC, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, através dos professores Ari Rosemberg e Natalio Gamermann, e pela Fundação de Ciência e Tecnologia – CIENTEC, sob a coordenação do geólogo Oleg Zwonok), análise dos caracteres construtivos, exame estático do sólido da fachada principal (realizado pelo engenheiro José Raimundo Oliva, da 4ª Diretoria Regional Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-SPHAN / Fundação Nacional Pró-Memória – FNPM), exame estático da situação atual da parte consolidada em 1938 – torre e pórtico, exame estático da situação atual da parte consolidada em 1968 – frontaria, controle sistemático, contínuo da progressão deformativa da fachada principal, a partir dos pontos de retícula marcados previamente (trabalho de medição de possíveis recalques, realizado pela empresa Tecnosolo S.A.).
As obras efetuadas entre 1981 e 1987, foram coordenadas por Fernando Leal, que contou com o apoio da Diretoria de Tombamento e Conservação do SPHAN, liderada por Augusto Carlos da Silva Telles. Desta instituição participaram na qualidade de consultores, o arquiteto mineiro Roberto Lacerda (assessorando na definição de critérios de intervenção) e os engenheiros José Raimundo Oliva (realizando exames estáticos) e Silvia Puccioni (assessorando na parte das estruturas).
No canteiro de obras, executaram as intervenções definidas pelo coordenador e sua equipe, os arquitetos Ana Lúcia Goelzer Meira, no ano de 1981, Odair Carlos de Almeida, que realizou a maior parte das ações, entre 1981 e 1986, Maturino Salvador Santos da Luz, entre 1986 e 1988, Débora Regina Magalhães da Costa, entre 1988 e 1989 e Vladimir Stello, desde 1987, sendo que os dois últimos seguiram após a saída de Leal. Lamentavelmente a priorização da consolidação das ruínas de Alcântara, no Maranhão, para a implementação da fracassada base de lançamento de foguetes espaciais, fez com que equipamentos fundamentais para a continuidade das obras, fossem deslocadas para aquele Estado. Mas a paralização das obras, ocorreram com a posse de Fernando Collor de Mello (1949) como Presidente da República, em 1990, desmantelando toda a estrutura formada na década anterior, no Ministério da Cultura, que foi extinto, e no canteiro de obras, em São Miguel das Missões. Prejuízo para o país e para o importante monumento.
João de Abreu Dahne, Lucio Costa, Lucas Mayerhofer, Maurício Dias da Silva, Luís Saia, Júlio Nicolau Barros de Curtis, Fernando Machado Leal, Luiz Antônio Custódio e Odair Carlos de Almeida, pelo menos estes nomes merecem o reconhecimento pela inegável contribuição prestada à preservação do monumento maior da cultura arquitetônica sul-rio-grandense. Muitos outros por lá passaram, mas estes incontestavelmente deixaram suas biografias associadas ao bem cultural de nível mundial que completa quatro décadas de reconhecimento internacional. O povo gaúcho reconhece e agradece.
BIBLIOGRAFIA:
CUSTÓDIO, Luiz Antônio Bolcato. Remanescentes da Igreja da Redução de São Miguel Arcanjo: levantamento cadastral. Porto Alegre: Pallotti – MinC/IPHAN, 1994.
CUSTÓDIO, Luiz Antônio Bolcato. São Miguel, 40 anos como Patrimônio Cultural da Humanidade. In: CHAVES, Ricardo. Almanaque Gaúcho. Jornal Zero Hora, 9 e 10 de novembro de 2023, p. 42.
LEAL, Fernando Machado. São Miguel das Missões: estudo de estabilização e conservação das ruínas da igreja. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 19, 1984, p. 71-96.
Foto da Capa: Goldemberg Fonseca de Almeida – São Miguel das Missões – Wikimedia