Quase sempre, quando penso na ditadura militar, é a imagem de homens fardados que me assalta primeiro — generais de olhar severo, gestos contidos, vocabulário disciplinado pela ordem e pelo silêncio. Vejo botas que pisam firme sobre o chão da história, abafando vozes, apagando passos. Tanques nas ruas, cavalos em marcha, soldados que investem contra a dignidade dos que ousam discordar da tirania instalada no poder. Invadem-me, também, os rostos das mães em prantos diante de delegacias, dos filhos que esperam por cartas que nunca chegam, dos jornalistas com os dedos suspensos sobre as teclas, receando cada palavra. Penso nos jovens que sonharam demais — e por isso desapareceram na calada da noite.
Quando falo da ditadura, sinto o cheiro do medo que pairava nas ruas como névoa espessa. O som das portas sendo arrombadas de madrugada, o peso do silêncio imposto nas salas de aula, nos cafés, nas conversas sussurradas. Lamento a ausência de liberdade, as palavras caladas, os pensamentos vigiados, o receio constante de ser, a qualquer momento, alvo da violência. Lembro das prisões que hoje chamamos pelo nome justo: sequestros. Das torturas escondidas por trás de muros, dos desaparecimentos sem explicação, da falta de notícias, das incertezas que se entranharam no cotidiano.
Quase sempre, ao recordar os anos de chumbo, lembro dos que viveram à margem, escondidos na clandestinidade, temendo não apenas pela própria vida, mas também pela dos que amavam. No entanto, quase nunca me ocorrem os que partiram — os que cruzaram oceanos em busca de refúgio, os que deixaram tudo para não morrer. No meu entendimento ainda incompleto de um tempo que não vivi, mas que conheço por livros, filmes e relatos, os exilados pareciam, até pouco tempo, os mais protegidos — longe do horror, fora do alcance das garras do regime. Ledo engano. Também eles carregaram suas dores. Deixaram para trás não apenas o território, mas a língua, os afetos, os rituais do cotidiano. Foram arrancados de casa, mesmo que pelas próprias mãos, e passaram anos tentando costurar uma vida onde tudo era estrangeiro — até o próprio nome.
A obra Crianças e exílio: memórias de infâncias marcadas pela ditadura militar, lançada recentemente pela Carta Editora e organizada por Nadejda Marques e Helena Dória Lucas de Oliveira, reúne relatos de pessoas que, ainda crianças ou adolescentes, foram levadas ao exílio pelos pais. Algumas já nasceram nessas terras estrangeiras e nunca se reconheceram brasileiros, nem se sentiram parte desta terra. A pátria que lhes faltava não era a que encontraram quando os pais decidiram voltar depois da lei da anistia.
Muitos desses depoimentos vêm de pessoas que buscaram abrigo no Chile, onde por um tempo viveram em paz — até que o golpe de Pinochet os empurrou novamente para a sombra da perseguição. Exílios dentro do exílio. Dores dentro de outras dores. E então, obrigados a recomeçar de novo, buscaram refúgio em outros cantos do mundo — em Cuba, na Suécia, em tantos países onde a palavra “asilo” significava mais do que proteção: era a possibilidade de continuar vivos.
Essas crianças, hoje adultas, carregam em seus corpos e afetos os traços de uma história que não escolheram viver. Sentem-se estrangeiras em todos os lugares, inclusive dentro de si mesmas. O retorno ao país de origem, quando possível, não significou um reencontro, mas uma nova perda: a do pertencimento. Ao escutarmos essas vozes, somos forçados a ampliar nosso entendimento sobre o que foi a ditadura. Não se tratou apenas da repressão interna, dos porões e da censura, mas também de um processo de desenraizamento profundo, que atravessou gerações. O exílio, nesse sentido, não é apenas um lugar — é um estado de espírito, uma forma de viver entre margens, carregando na bagagem uma ausência irreparável.
Crescer sob o receio da perseguição, mesmo que em um país seguro, é crescer com a sombra do medo sobre o travesseiro. Saber que os pais estão ali, mas sob constante vigilância ou preocupação, é viver em estado de alerta. Ser criança nesses contextos é amadurecer cedo demais — é aprender a calar, a esconder, a escapar. E talvez por isso esses relatos nos afetem tanto. Porque eles tocam em um ponto essencial da memória coletiva: aquilo que não foi dito, mas que ainda pulsa.
Em tempos em que vozes autoritárias voltam a ocupar espaços de poder e questionam verdades já consolidadas — como se a História pudesse ser reescrita ao sabor das conveniências —, obras como Crianças e exílio tornam-se ainda mais urgentes. A literatura, nesse contexto, deixa de ser mero artifício estético para tornar-se também uma forma de resistência. É através da palavra — reconstituída, reelaborada, escrita muitas vezes com dor — que se recuperam pedaços de si e do país perdido. O ato de escrever transforma-se num gesto político: não para promover verdades absolutas, mas para multiplicar olhares, recuperar nuances, dar corpo ao que ficou suspenso.
Por isso, é preciso escutar. E mais do que isso: é preciso escrever. Escrever para lembrar. Escrever para honrar. Escrever para que nenhuma infância mais precise ser arrancada, para que nenhuma palavra mais precise ser engolida. A literatura tem esse dom: não desfaz o que passou, mas impede que se apague.
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Foto da Capa: Professora Lícia Maciel Hauer (terceira da esquerda para direita) com o pai em Santiago, Chile. Acervo Pessoal.