Jorge Luis Borges, Benedetto Croce e o historiador Paulo, o Diácono, se referem em distintos textos e contextos à história de Droctulf, um guerreiro longobardo que, no assédio à assombrosa Ravena, abandonou seus companheiros e passou a defender a cidade que antes atacara. Os longobardos (longas barbas) vinham do norte gelado da Europa, tinham costumes bárbaros, comiam carnes cruas e não construíam moradias.
Ravena era uma cidade romana, com casas de pedra, madeira e mármore, com traçado planejado, com mercados, banhos públicos, palácios e templos, enfim uma cidade civilizada. Lá pelo século VIII, através de florestas, pântanos e desertos, a guerra trouxera a Ravena desde as margens do Danúbio, os longobardos e seu chefe, Droctulf, os quais desolaram planícies e cidades inteiras da Itália.
Em Ravena, o bárbaro Droctulf viu algo que jamais vira: os ciprestes em linha e o mármore, uma cidade feita de estátuas, de templos, jardins, habitações, portas corrediças, balcões gradeados, capitéis, praças regulares e abertas. Essas visões causaram a Droctulf uma iniludível impressão como agora nos impressiona uma máquina complexa da qual não entendemos seu funcionamento.
Droctulft, então, abandonou os seus parceiros de lutas e massacres e defendeu Ravena ao lado dos habitantes da cidade (onde está localizado o túmulo de Dante). Na sepultura do converso bárbaro longobardo foram gravadas palavras de agradecimento por sua nobre e heroica atitude. Enfim, ele preferiu a civilização à barbárie. Na opinião de Borges, Droctulf não foi um traidor (os traidores não costumam inspirar epitáfios piedosos), foi um iluminado, um convertido.
Depois de muitas gerações, os longobardos que odiaram o trânsfuga procederam como ele: fizeram-se italianos, lombardos, piemonteses, friulanos e outras origens étnicas que resultaram nos inúmeros dialetos e culturas que coexistem na Itália de hoje. Heróis são por vezes necessários, mas traidores também. Os labirintos da história humana são complexos e árduos e deles nem sempre se vislumbram seus trajetos e fugas. Tomamos partido de uns ou de outros, conforme nossas visões e (des) ilusões do momento social e espiritual em que vivemos.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras Foto da Capa: Ravena / Reprodução do Youtube Mais textos da Zona Livre: Clique Aqui.