Acompanhei uma pessoa que tinha um hábito curioso e útil no sistema do seu micromundo. Por algum tempo, guardava as embalagens dos produtos que provava e gostava. Fazia isto para lembrar-se de comprá-los novamente. A seu modo, armava um museu da memória de seu paladar. Um museu daquilo que gostaria ativamente de repetir.
De minha parte, tenho cá meus hábitos de memória também. Aprendi a conhecida técnica de voltar a algum lugar da casa para, por exemplo, lembrar o que queria fazer. No meio ou no fim do trajeto, sempre penso: O que estou fazendo aqui? Como não sei, volto ao ponto de partida.
Esquecer é um verbo necessário em nossa vida. Uma dádiva para não ser como o “cronomático” e memorioso Funes borgeano. Naturalmente, o desejo de controle, de manipular ativamente uma memória, se relaciona com o singelo anseio de viver bem. O problema é que esquecer, muitas vezes, nos leva direto ao ponto de partida. Ou, no melhor dos casos, algumas casas para trás. Há quem sinta um peso enorme em ter que amarrar um fio no dedo, ou ainda, encontrar-se diante da pergunta: para que era mesmo este fio? Será que alguém chegaria ao absurdo de amarrar o fio para lembrar do outro fio e que nos leva ao motivo inicial? Nesse jogo de espelhos enfrentados e repetidos, nem sempre vale a pena se perder.
Lembrar, fazer memória são atos que, ao mesmo tempo, nos colocam perto do festejo: comemorar fica lembrar com outros e celebrar quase homófono ao “se lembrar”. Tudo isto porque repetir pode ser glorioso quando se trata de um festejo, mas desastroso quando se trata de um equívoco, de um não-aprendizado. Em 1914, Freud nos ensina essa dinâmica no necessário texto Recordar, repetir, perlaborar ou “elaborar”, dependendo da tradução. De todos os modos, na palavra está a presença inequívoca do trabalho – o labor – tão presente nessa dinâmica psíquica entre lembrança, esquecimento e repetição, que são aparições do inconsciente, enquanto memória é a resposta a um chamado, de forma ativa.
24 de março, ativamente, se faz memória pela Argentina, mas também pela América Latina. É pela memória, verdade e justiça pelo golpe de Estado que culminou na última e violentíssima ditadura de 1976-1983. Há quase 50 anos, esta história ainda revela, assim como no Brasil, desdobramentos destes terrorismos de Estado que ainda estão por aqui.
Hoje, 25 de março, iniciamos o julgamento de Bolsonaro e seus comparsas golpistas que queriam uma nefasta repetição de 1964. Um novo ponto de partida, já que somos experts em esquecimento e ainda fracos em memória.
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Foto da Capa: reprodução de Redes Sociais