O documentário “Mercadores da Dúvida” começa com um mágico dizendo: “Sou um especialista em enganação”, e ele avisa ao seu público, “vou enganá-los, mas, tudo bem, vocês vão sair bem desta experiência”. Em seu depoimento, o mágico diz que se sente agredido ao ver alguém usar o talento da enganação, que ele considera honesto, para distorcer as coisas e para manipular as pessoas alterando o seu senso de realidade sobre como o mundo funciona. Eu gostei muito deste documentário e recomendo que você assista.
Mas, afinal, quem são os mercadores da dúvida? Na década de 1950 veio a público nos EUA que o cigarro fazia mal para a saúde. A resposta das empresas do tabaco foi de contratar uma consultoria de relações públicas, a qual recomendou aos CEOs: “Não neguem as provas, mas semeiem a dúvida”. Em 1963, as empresas do tabaco já tinham estudos que comprovavam que a nicotina viciava e que o cigarro causava uma série de danos para a saúde, mas continuaram dizendo que não existiam evidências científicas que comprovassem estes danos. Vinte anos depois, em 1984, os CEOs das grandes empresas do tabaco depuseram no Congresso Americano, sob juramento, e disseram que acreditavam que a nicotina não viciava. Nesta época, o cigarro já matava meio milhão de americanos por ano.
Dois cientistas renomados, Dr. Fred Singer (foto da capa)e Dr. Fred Seitz, ocuparam espaços na mídia dizendo que não havia consenso científico de que o cigarro fazia mal para a saúde e contestavam os dados da EPA sobre o fumo passivo. Na época, as pessoas fumavam dentro dos aviões, em salas de aula e até no leito de hospitais. As empresas do tabaco mudaram o foco das suas campanhas para a defesa da liberdade de fumar em qualquer lugar. Alertavam fumantes e não fumantes que proibir o cigarro em locais fechados era o primeiro passo, depois viriam outras proibições até que as pessoas não poderiam mais tomar suas próprias decisões. Aqui voltamos às palavras do mágico: usar a enganação para distorcer o senso de realidade das pessoas.
O sucesso da estratégia das empresas do tabaco serviu de modelo para outros setores que estavam sendo pressionados por algum dano que estavam causando para a população ou para o meio ambiente, como foi o caso do setor do carvão, petróleo, pesticidas, alimentos ultraprocessados e os céticos negacionistas das mudanças climáticas. Mas por que tanto interesse em negar o aquecimento global?
Curiosamente, os renomados Doutores Freds aparecem novamente na mídia questionando as mudanças climáticas e lideram o movimento dos céticos negacionistas. Em 1997, nas vésperas da Conferência de Kyoto sobre as mudanças climáticas, Fred Seitz e seus aliados lançaram o documento “Petição de Oregon”, que pedia que os EUA rejeitassem o acordo. Resultado, o governo americano não assina o acordo. Dr. Fred Seitz dizia que a Petição tinha 31.478 assinaturas, mas entre os assinantes foram encontrados nomes como o de Charles Darwin, de artistas e de personagens de filmes.
Em 2009, nas vésperas da Conferência de Copenhague, quando os EUA se aproximavam novamente de um acordo e tinha a presença confirmada do Presidente Obama, hackers acessam os e-mails dos climatologistas na Universidade de East Anglia (Inglaterra) e denunciam que os cientistas estão manipulando os dados para que o homem seja considerado o responsável pelo aquecimento global. Comitês independentes analisaram os e-mails e constataram que houve uma alteração no texto “raqueado” para dar outro sentido. Quando o resultado da apuração foi divulgado, os céticos já tinham ocupado o espaço na mídia mundial denunciado o dito escândalo. Não se chega a um acordo na Conferência.
A pesquisadora de Harvard, Naomi Oreskes, analisou 928 artigos publicados entre 1992 e 2002, nas principais revistas científicas do mundo, e nenhum artigo discordou que grande parte do aquecimento global ocorre devido à ação do homem. A conclusão a que se chega é que os céticos são pessoas que são bons comunicadores ou cientistas renomados que falam, mas que não escrevem o que falam. Naomi passou a ser atacada e foi investigar quem eram os seus agressores. Descobriu que os renomados Fred Singer e Fred Seitz no passado foram contratados pela Philip Morris e pela R. J. Reiynolds, respectivamente, e que ambos trabalharam para as forças armadas americanas. Na sua opinião, o que hoje os faz serem contra a ciência e seus colegas é que ambos são contra a regulação do mercado e veem os ambientalistas como comunistas sorrateiros. Eles costumam chamá-los de melancia, verdes por fora e vermelhos por dentro. O medo dos céticos negacionistas é de que as regulações ambientais possam desembocar no socialismo.
As estratégias vão se sofisticando, por exemplo, a Exxon Oil financia mais de 30 organizações que distorcem dados e promovem a desinformação sobre as mudanças climáticas. A mídia dá espaço para estas organizações consideradas “independentes”. A boa notícia é que, em 2012, um juiz americano considerou que os CEOs das empresas do tabaco, os que fizeram juramento no Congresso, mentiram quando disseram que não sabiam que a nicotina vicia. Eles tiveram que ir a público admitir o erro e foram punidos por isto. A má notícia é que em relação às mudanças climáticas, não temos 50 anos para esperar as pessoas se darem conta de que os mercadores da dúvida estão lhes enganando.
Referências:
– Documentário Mercadores da Dúvida – disponível em Google Play e Prime Vídeo.
– Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima – IPCC
<< Gostou do texto? Avalie e comente aqui embaixo >>