Minamata é uma cidade da costa ocidental da ilha de Kyushu, no Japão, que fica ao largo da baía que tem o mesmo nome. Na década de 1950, Minamata era uma pequena e tranquila cidade de pescadores. Em 21 de abril de 1956, essa tranquilidade começou a ser quebrada quando uma criança com graves disfunções no sistema nervoso deu entrada no hospital Shin Nihon Chisso.
Pouco tempo depois, mais quatro pacientes com sintomas similares apareceram no centro de saúde pública de Kumamoto (nome da província onde fica Minamata). Os médicos ficaram confusos com os sintomas que os pacientes tinham em comum: convulsões severas, surtos de psicose, perda de consciência e coma. Mais tarde, com febre muito alta, todos os quatro pacientes morreram. A doença ficou conhecida como “o mal de Minamata”.
O que ocorreu ali é que uma indústria química lançava dejetos contendo mercúrio nas águas da baia desde 1930. Inicialmente, mesmo que houvesse alguma intoxicação por mercúrio, nada de mais grave foi identificado. Somente duas décadas depois começaram a surgir sintomas mais evidentes de contaminação: peixes, moluscos e aves morriam. E logo depois a contaminação atingiu os seres humanos. Mas, a princípio, mesmo assim ninguém sabia o que estava acontecendo. Os médicos ficaram chocados pela alta mortalidade da nova doença: ela foi diagnosticada em treze outras pessoas, incluindo alguns de pequenas aldeias pesqueiras próximas de Minamata, que morreram com os mesmos sintomas, assim como animais domésticos e pássaros.
Foi descoberto que o fator comum às vítimas era que todas comiam grandes quantidades de peixes da Baía de Minamata. Pesquisadores da Universidade Kumamoto chegaram à conclusão de que o mal não era uma doença, mas sim envenenamento por substâncias tóxicas. Tornou-se claro que o envenenamento estava relacionado à fábrica de acetaldeído e PVC de propriedade da corporação Chisso, uma companhia que produzia fertilizantes químicos. Mas falar publicamente contra a companhia não era recomendado na cidade, já que era uma grande empregadora – algo, aliás, comum em todo o mundo até hoje, inclusive no Brasil, onde troca-se empregos por poluição.
Com o tempo, a equipe de pesquisa médica chegou à conclusão de que as mortes foram causadas por envenenamento com mercúrio mediante consumo de peixe contaminado. O mercúrio era utilizado no complexo Chisso como catalisador. Era então lançado ao rio com os outros dejetos industriais, chegava ao mar e contaminava os peixes e outros frutos do mar que as pessoas comiam.
Formas de contaminação
O mercúrio é extremamente tóxico. Suas formas de contaminação podem ser aguda e crônica. A intoxicação ou envenenamento agudo, que ocorre quando a pessoa absorve grandes quantidades em pouco tempo, se caracteriza por corrosões severa na pele e nas membranas das mucosas, náuseas, vômito, dor abdominal e diarreia com sangue. O envenenamento agudo pode matar em cerca de 10 dias.
A intoxicação crônica, que se desenvolve quando a pessoa (ou animal) absorve pequenas quantidades ao longo de muito tempo (o mercúrio, uma vez ingerido, não é expelido pelo organismo), se caracteriza por sintomas neurológicos, tremores, vertigens, irritabilidade e depressão, associados com dermatite e diarreia. Após isso pode haver descoordenação progressiva, perda de visão e deterioração mental, e até morte.
Poluente Químico Persistente
O “Mal de Minamata” foi uma intoxicação crônica que levou vinte anos para se manifestar após o início da contaminação. O mercúrio, por esta característica de se acumular progressivamente nos organismos, é denominado de poluente químico persistente. Não é o único metal pesado com essa característica. Chumbo, arsênio, cromo e níquel são outros exemplos. Assim como uma grande gama de moléculas orgânicas tóxicas, sobre as quais falarei na próxima coluna.
Quando uma intoxicação progressiva atinge determinada concentração e os sintomas se manifestam pela primeira vez, às vezes já é tarde demais para evitá-la, e muitos pessoas já estão contaminadas. O mercúrio em Minamata era lançado na sua forma orgânica (metilmercúrio). Esse composto é lipossolúvel (ou seja, se acumula na gordura dos organismos), e pode alcançar elevados níveis de concentração em peixes e mariscos. Estes últimos, para absorver oxigênio e para se alimentarem, filtram grandes quantidades de água. O que aumenta a concentração de mercúrio em seus corpos.
Em Minamata morreram 1.435 pessoas e mais de 20 mil pessoas foram vítimas diretas da contaminação pela fábrica da Chisso. No início, a Chisso compensou algumas pessoas. Mas, na medida em que o número aumentava, a empresa foi aos tribunais para negociar as indenizações. O processo causou uma grande comoção no Japão, e se arrastou até 1973, quando mediante o trabalho do novo diretor da Agência Ambiental Miki, um acordo foi alcançado, o que levou ao pagamento de indenizações às referidas 20 mil pessoas. Por outro lado, estima-se que mais de 2 milhões de pessoas tenham sido contaminadas por metilmercúrio no Japão.
O caso da Baía de Minamata, por mais trágico que tenha sido, não evitou que a contaminação dos frutos do mar continuasse em todo o mundo, ainda que de forma menos intensa. O mercúrio é liberado no ar e na água pela queima do carvão, mineração e em diversos outros processos industriais. Se examinarmos uma indústria específica, vão dizer que a quantidade é pequena. Mas a soma dos rejeitos de todas as indústrias não é pequena e, se considerarmos a contribuição do garimpo – que será discutida adiante – e que o mercúrio se acumula no organismo, podemos estar diante de uma intoxicação em massa.
De fato, peixes que vivem em águas com apenas 1 ppt (parte por trilhão) de mercúrio podem conter concentrações de metilmercúrio em quantidades danosas aos seres humanos.
Um estudo recente do Darmouth College dos Estados Unidos demonstrou que a concentração de mercúrio pode aumentar em 10 milhões de vezes na medida em que ascende na cadeia alimentar, de pequenas algas microscópicas até os peixes maiores. Esse fenômeno se chama de bioacumulação, tratando-se de uma consequência direta do fato dos organismos não expelirem o mercúrio neles acumulado.
O mesmo estudo do Darmouth College mostrou que as concentrações de mercúrio em lagos e rios de todos os 50 estados americanos estão acima do tolerado para animais e humanos. O mesmo provavelmente ocorre na maior parte dos rios, lagos e mares de boa parte do mundo. Na verdade, a maior parcela do mercúrio ingerida pelos americanos é pelo consumo de atum e peixe-espada, que são espécies oceânicas.
Os benefícios de consumir frutos do mar, principalmente peixes, são amplamente propagados. Mas seus malefícios, tais como a contaminação por metais pesados e por microplástico (como vimos na coluna da semana passada), são muitas vezes escondidos (de uma forma semelhante ao caso do plástico, muitas organizações que certificam a qualidade dos frutos do mar são patrocinadas pela indústria pesqueira). Diante dessas evidências, é mais seguro consumir peixes e frutos de mar de maneira ao mínimo moderada.
A bomba relógio
No Brasil, muitos peixes e outros animais marinhos apresentam contaminação por mercúrio. Mas aqui, assim como em alguns outros países em desenvolvimento, esse problema é muito agravado pelo garimpo ilegal. A poluição por mercúrio é comum em áreas de garimpo, afetando vastas regiões do Brasil. Os garimpeiros usam o mercúrio para coletar ouro dos concentrados na forma de um amálgama e recuperam o ouro metálico “queimando-o”, vaporizando o mercúrio, o qual é levado pelo vento, e logo se deposita nos solos, rios e lagos. É nesses ambientes, quando em contato com a matéria orgânica, que se transforma em metilmercúrio, o mesmo composto presente em Minamata.
Recentemente, foram publicadas reportagens sobre uma pesquisa da Fiocruz que revelou que quase todos os indígenas das nove comunidades da Terra Indígena Ianomâmi estão contaminados com níveis muito altos de mercúrio.
Segundos os pesquisadores da Fiocruz, os peixes da região também apresentam contaminação, com as maiores concentrações encontradas em peixes carnívoros, evidenciando o fenômeno de bioacumulação típico dos poluentes persistentes.
Os casos relatados na população Ianomâmi são de contaminação aguda, por viverem próximos aos locais de garimpo ilegal, onde o uso de mercúrio é indiscriminado. Mas o mercúrio dessa região, e de muitos outros garimpos ilegais (e, dependendo da eficácia da fiscalização, mesmo de empreendimentos legais) está se disseminando em toda região amazônica, nas águas, nos solos, e nos seres vivos. Assim como em outras áreas do país. E não vai contaminar apenas os indígenas, mas toda a população ribeirinha, e mesmo a das cidades, que consomem produtos e água dos rios.
O fato é que, com essa disseminada exploração de ouro e uso de mercúrio, a Amazônia está a caminho de se transformar numa Minamata gigante, cuja tragédia só vai acontecer de fato, não imediatamente, mas num futuro incerto, ainda que não muito distante.
É uma tragédia silenciosa. Como eu disse acima, quando os sintomas da contaminação crônica se manifestarem em toda sua intensidade, será tarde demais para evitar dezenas de milhares de mortes e centenas de milhares de pessoas parcialmente incapacitadas pelo resto da vida. Há, portanto, na região amazônica, uma bomba relógio de proporções imensas se preparando para explodir.
1Texto extraído, com adaptações e complementações, do livro “Planeta Hostil”, de minha autoria, publicado este ano pela Editora Matrix, de São Paulo. O livro pode ser adquirido no seu site: matrixeditora.com.br e na Amazon.
2Uma boa fonte informações sobre a poluição nos mares, assim como a pesca predatória, é o documentário Seaspiracy, da Netflix.
Observação final: Para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
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Foto da Capa: Frenando Frazão | Agência Brasil