Era uma vez um aviso: este texto entra para a série “coisas que escrevemos que deveríamos guardar para nós mesmos ou na gaveta”. No entanto, vai entender qual é o mistério, mas a partilha da voz amplifica os efeitos da escrita. Peço licença, mas necessito ampliar uma coisa aqui… Então, lá vai!
Houve um tempo em que me deixava muito bem ser chamada de “guerreira”, “lutadora”, “batalhadora” – e um longo etc. Era um bom fast food para meu ego fragilizado como uma mulher negra que tentava se inserir a fórceps e que, então, só via mérito no sacrifício, já que nada vinha muito fácil. Muito mais tarde – e vá análise, letramento racial e tornar-se negra – entendi que minha reivindicação por um lugar melhor não era pura histeria e que essa história de sacrifício e meritocracia era uma baita de uma sacanagem. O que me faltava é o que falta a todas as pessoas negras do país, ou seja, a tal reparação histórica.
Nesse contexto em que essa reparação ainda é tão deslegitimada e incipiente, a vida da mulher negra que acessa alguns lugares é o que chamo de paradigma Beyoncé. Ou seja, há que se construir a própria mesa, porque dificilmente vão te convidar para sentar naquelas que existem. Sim, até dá resultado, mas, inegavelmente, cansa. Ah, e como cansa! No entanto, há que se tirar proveito desse cansaço, pois ele carrega uma advertência que tem valido muito nessa seara do enfrentamento do racismo e das outras opressões que, de igual modo, são controles ativos dos corpos em prol do capital.
Agora, tento escolher melhor as minhas lutas, porque é fácil demais cair no erro de se tornar uma ferramenta que alimenta a estrutura contra a qual se quer lutar. E é como disse Audre Lorde, “as ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa grande”[1]. Precisaremos de outras. É aí que resgatar tecnologias ancestrais – quer dizer, que não foram tocadas pelo raio colonizador – parece uma chave incontornável.
Em todo o caso, também existem tecnologias que surgiram como efeito e resistência à colonização, que são tudo de bom. Os que me antecederam não tinham mais opção do que lutar, lutar e lutar. Porém, parte da luta era ginga, artimanha e estratégia. A malandragem que nos fez e nos faz sobreviver. Nem sempre o malandro é o meliante; às vezes, ele é aquele que não se deixa usurpar e que economiza sua escassa energia para as lutas certas. Além disso, o malandro nunca se desvencilha do prazer. E é aí que ele é pura resistência, porque o senhor – mestre corpóreo e incorpóreo do capital – é aquele que sempre vai tentar controlar o prazer e a delícia dos corpos. Para isso, o senhor vai glamorizar a dor: no pain, no gain eles disseram. E nós acreditamos, o que é pior.
No entanto, o que parece má vontade ou até preguiça é, na verdade, metodologia. E é por essa metodologia que abomina o lugar de sacrifício – acho que já deu, né? – que meu ativismo tem e terá limites. Aliás, respeitar esse limite é o próprio ativismo. É por isso que acabou a paciência infinita para explicar o óbvio para uma branquitude que já está mais do que ciente dos seus privilégios. Existem excelentes consultoras de diversidade que podem fazer esse trabalho de forma qualificada, digna e remunerada. Por que eu tenho que me exaurir? Por que eu sou negra e o problema é meu? É só meu? Não será melhor guardar, malandramente, essa energia para estender as mãos para as minhas irmãs que estão nas bordas da cena, como escrevi em outro lugar[2].
Nós negras e negros pagamos com a vida e/ou com o nosso tempo para entender os privilégios da branquitude apenas para estar perto e nunca para chegar lá. Por mais mérito que o nosso sacrifício tenha, muitas vezes, não vai passar disso: sacrifício.
[1] Lorde, Audre. “As ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa-grande” In: Irmã Outsider. Belo Horizonte, Autêntica, 2020.
[2] Souza, Priscilla M. “Da moldura à cena: mulheres negras na instituição psicanalítica” In: Instituições psicanalíticas: às margens do impossível, Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 2022.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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