Vintevinteedois, Brasil. Acesso algum sistema de mídia que neste momento possui pessoas discutindo de forma on-line algum tema relevante sobre investimentos. Sorrio quando identifico que não sou a única, sim, no gênero feminino, ser humano que se identifica pelo uso do “a” quando da designação, que está on-line em escuta sobre o tema, a sensação de me espantar e de me alegrar não é harmoniosa.
Abro um vinho, caneta na mão direita, taça na mão esquerda, de gole em gole, vou pensando nas estratégias de investimento discutidas e indicadas, rabisco indicadores. Lá pelo fim do copo, a frase que me repulsa e quase me faz por todo o vinho do gole no tapete da sala é: “O único bem que posso pôr em garantia do meu negócio é a minha mulher, pois ela é meu bem.”
Meu bem.
A mulher vista como coisa, como bem, ainda se encontra em frases verbais, sem qualquer tipo de vergonha ou pudor em pleno século em vigência. Não faz muito tempo, não é? Se estivermos partindo de um corte racial, a coisificação era autorizada, porque corpos escravos eram transacionados.
E não me venha com o sentido da palavra e a forma carinhosa com que ela poderia dar conotação. Bem, de bem querer, passa a lonjuras da intenção do interlocutor e afeto não é efeito de posse, pode conferir lá no Código Civil. E por falar em lei, é sexagenário o estatuto que mais concedeu direitos à mulher, o dito Estatuto da Mulher Casada, que nos tornou mais distante dessa incapacidade, pois ser um bem é ser uma coisa, coisas não possuem capacidade civil = direitos.
Em 1962, o Brasil vivia a emergência dos movimentos políticos de massa na cena pública, no qual forças conservadoras respondiam propondo limites à participação política e muitas ações vinculadas aos direitos civis discutidos às mulheres casadas eram definidas como “contaminadas pelo comunismo”. Juro que era 1962, viu?
A partir deste estatuto permitiu-se que a mulher pudesse trabalhar fora de casa, sem a permissão do marido.
Trabalhar fora sem autorização do marido, seria um marco inicial para compreender o empreendedorismo feminino? Não, o marco para o empreendedorismo feminino é trabalhar fora de casa e receber uma remuneração por esse trabalho destinado para si, porque, na realidade, a maioria das mulheres já exercia ocupações, todavia sem a percepção de uma renda, e caso esta existisse, essa renda não era destinada a ela.
O trabalho não remunerado e doméstico já nos era comum, ou como diziam “natural”, mas receber, obter rendimentos para si, não para sua família, ou para o seu marido, portanto, compreender que o valor das suas horas naquele determinado local iria para o seu bolso, ser de sua decisão sobre.
Isso sem considerar todo o trabalho de domésticas, cozinheiras, doceiras, vendedoras de ruas que as mulheres negras há séculos desempenhavam suas atividades em benefício da branquitude, cujos valores de seus serviços e produtos eram atribuídos pelo mercado que consumia, ou seja, como se um favor fosse.
Aqui está a justificativa para que eu ainda me espante em encontrar mulheres em espaços em que o tema seja dinheiro sessenta anos depois. Espaços em que encontramos, ainda, nossos corpos sendo descritos como um bem, um bem que sequer é seu, mas de que outro, que se intitula possuidor, pois há um pronome possessivo nesta frase, que remotamente permite sugerir uma disposição em prol de um comércio/negócio.
Prever legislativamente que a renda percebida pela atividade laboral de uma mulher casada, implica em reconhecer que por 1962 anos ela não tinha qualquer direito sobre esses valores, sendo que se solteira fosse, desde 1934 o direito ao trabalho remunerado já lhe era concedido.
E se você acha que a solteira de 1934 ou a casada de 1972 usava seu soldo para “brusinha”, enganada está você, pois a mulher estava inserida dentro de um peculiar instituto chamado família, ou seja, a renda era toda em prol dos outros e não de si.
E não podemos esquecer que a origem etimológica da palavra família, vem do latim famulus, que quer dizer escravo doméstico.
Chris Baladão, bicho raro, formada e por coração advogada, na época em que o curso levava sociais em seu nome, escritora por necessidade de expor a palavra, bailarina porque o corpo exige, professora porque a experiência da vida precisa ser compartilhada.