Iniciei minha transição capilar em 2019, como um processo de reconhecimento da minha identidade, após mergulhar em busca da minha essência e de apaziguar a constante guerra travada diariamente, de forma inconsciente, em busca de um embranquecimento estético para me sentir com o aval de uma sociedade, que tem o pacto narcísico da branquitude entranhado em nossas vidas.
Foram anos ouvindo: “Se não fosse o cabelo eu diria que você é branca…” até eu entender todos os aspectos envolvidos como colorismo, racismo… foram anos e anos travando uma batalha contra mim mesma, e meu cabelo. Até o ponto que eu não sabia identificar o que afinal era meu cabelo. Cacheado? Crespo? Crespíssimo? 3B, 3C, 4B, 4C? Ou no popular carapinha, cabelo ruim, cabelo aço, cabelo duro?
Notem que no popular tudo é depreciativo em relação aos cabelos naturais de afrodescendentes e, se você cresce ouvindo isto, como vai querer abraçar sua característica física natural como algo positivo? As pessoas brancas focam no cabelo de afrodecentendes, pois é uma forma ancestral de identificação racializada. Os cabelos para nós pessoas pretas está como os olhos asiáticos. São características genéticas das nossas racialidades.
Em toda minha vida até 2019 eu lutei contra o meu cabelo. Luta travada arduamente com cremes, apliques, alisamentos em busca de um tal cacho definido, um volume domado, uma simetria, e um ar de “arrumado” contra o ar de exotismo, exuberância e racialização.
O cabelo afro natural ocupou a cena protagonizando debates escancarados no BBB23 entre os participantes brancos opinando até sobre o ar de “sujeira” dos cabelos afros naturais presente na edição. Aline trouxe à cena a informação das curvaturas de nossos cabelos, ensinando o brasileiro médio que existem diferenças e beleza em todos os cabelos crespos e crespíssimos.
Em pleno 2023, apesar de muita gente dizer: seu cabelo é lindo…, a construção deste significado ainda vai evoluindo entre as palavras e o poder internalizado da autoestima negra. Esta internalização parte de um processo de reconhecimento, entendimento e principalmente de um resgate ancestral da nossa história, memórias, beleza e força.
Para mim, como mulher negra, o volume do meu cabelo grita minha potência e diferença. E foi o mais difícil de aceitar pois entender a beleza da diferença é o desafio em uma sociedade que valoriza e premia a padronização. Segurar o tamanho da nossa coroa na cabeça requer muita força.
Quando, nesta semana, a influenciadora Camilla de Lucas (foto da capa), 28 anos, revelou o resultado de sua transição capilar na internet aparecendo com um belíssimo Black Power suscitou novamente um grande debate sobre a importância de reafirmar e naturalizar a beleza dos fios crespos e crespíssimos. Assim como Camilla, Iza foi para internet dizendo:
“A gente escuta muita coisa, dá muito ouvido para a opinião dos outros. Quando você se ama e alguém vier dizer que seu cabelo é feio, ruim ou esquisito, você deve falar: Tá louco, né meu amor? Eu sou maravilhosa. A gente acaba aprendendo a rebater essas coisas porque você sabe quem é, sabe o valor que você merecer, sabe que sua cotação é dólar. Meu cabelo é um ato político”. Taís Araújo, no mesmo post do @sitemundonegro, classifica seus fios naturais com muito orgulho e diz que também levou um tempo para compreender e hoje não irá retroceder: Cabeça erguida, queixo para cima e nenhum passo para trás. Quem vem?
A convocação de Taís é um ato de chamar mulheres negras para segurarem e afirmarem suas potencias através da exploração da naturalidade de seus cabelos aprendendo a se amar como são em suas diferenças. E, principalmente, se reconhecerem em suas negritudes. E se você acha que isto é passado… você não imagina a quantidade de DMs que recebo de mulheres negras elogiando minha “coragem” … que elas acham bonito, mas não conseguiriam… quem critica como falta de coragem deveria dar dois passos pra trás e entender o que é viver em uma sociedade racista em pleno século XXI.
Quando me sentei na cadeira para a minha transição em 2019, a terapeuta capilar preta, Claudia Francisca, em Porto Alegre, me disse: “Se prepare… será um processo de descoberta, difícil, de tomada de consciência, de dor e amor…” E foi… e ainda está sendo, pois me ressignifico não como esquisita, mas exuberante, olho no espelho e consigo ver a linhagem que existe em mim… vejo outras como eu. Passo a existir no mundo de forma única, mas conectada, sem subterfúgios ou controles.
O cabelo não é só um cabelo para uma pessoa preta. O cabelo é nossa afirmação política ancestral. Tem que saber ser e poder segurar.