Quando você vai a um médico, a um psicólogo ou a um psicanalista, em geral você está buscando um nome para o que está sentindo. Por exemplo, se você estiver com dor de garganta, cansaço, coriza e tosse, o seu clínico geral provavelmente vai suspeitar que você esteja resfriado, gripado ou, hoje em dia, com COVID. É esperado que você saia da consulta com a prescrição de remédios para aliviar os seus sintomas e, muitas das vezes, com uma requisição de um exame PCR.
Este profissional está em busca de um nome para a doença que aflige você para, a partir daí, prescrever a conduta adequada para que você se sinta melhor. Parece simples, mas não é. Para que o seu clínico geral possa dizer qual o mal que está lhe provocando os seus sintomas, ele precisa recolher da sua fala alguns elementos relevantes (intensidade da dor de garganta, medição da temperatura corporal, há quanto tempo os sintomas estão presentes…) e, tendo estes elementos em mente, referenciá-los a um manual (o Catálogo Internacional de Doenças, o famoso CID) que agrupa sintomas e sinais em entidades clínicas como a influenza, o resfriado comum ou a COVID-19, por exemplo. Este é um processo feito de forma quase automática para um clínico experiente. Ao fim e ao cabo, quando você tiver realizado todos os exames requisitados e entrar em contato novamente com o clínico, ele vai ter condições de dar um nome para a sua doença. Em outros termos, ele vai devolver para você um diagnóstico.
Quando entramos no campo da saúde mental, entretanto, este cenário se torna muito, muito mais complexo. Uma coisa é relatar ao clínico a temperatura à qual chegou a sua febre ou mostrar a sua garganta avermelhada para que ele possa diferenciar uma infecção viral de uma bacteriana, por exemplo. Outra, é explicar para um psicólogo, psiquiatra ou psicanalista como é a sua sensação de ansiedade. Um aperto no peito? Uma dificuldade de ficar parado? Pensamentos catastróficos? Ou a sua depressão? Tristeza? Mas o que significa tristeza? Dificuldade de sair da cama? Ou seja: no que se refere a sintomas psíquicos, o sofrimento precisa passar pela palavra, o que, por si só, já deixa tudo bem mais complexo – e interessante. O sintoma psíquico é narrativo, não pode ser visto em um raio-X ou numa medição de exame de sangue.
Claro que existem diversos estudos hoje em dia que procuram evidências fisiológicas para as patologias psíquicas. Muito se tem tentado encontrar “o gene causador da depressão” ou a imagem tomográfica específica do cérebro de um paciente diagnosticado com transtornos de ansiedade generalizada, por exemplo. Os problemas destas abordagens são muitos, e não quero cansar o leitor com os detalhes filosóficos desta discussão. Mas gostaria de apontar que, ainda que tenhamos avançado muito nos exames de imagem, ainda assim a relação entre os resultados e a causa dos padecimentos psíquicos não é de causalidade, apenas de correlação. Em outros termos: é claro que um cérebro de alguém que apresenta os sintomas de depressão se mostra diferente em uma ressonância magnética, mas isso não significa que as alterações fisiológicas sejam a causa destes sintomas: pelo contrário, faria mais sentindo supor que são os aspectos do ambiente que acabam se refletindo em alterações cerebrais.
Ou seja: somos nós, humanos, que através da linguagem agrupamos alguns sintomas e damos a este conjunto um nome, como TDAH, depressão, ansiedade… Logo, a forma como nós agrupamos estes sintomas depende da cultura e da época em que estamos inseridos. A natureza não está nem aí para produtividade, tristeza ou felicidade. O gene não sabe o que significa estar ansioso ou não.
O mesmo vale para a depressão: ainda que existam alterações no nível de serotonina circulante no cérebro, é complicado do ponto de vista metodológico afirmar categoricamente que são essas alterações que causam a depressão. Dizer isso seria o mesmo que propor que você, leitor, está com dor de cabeça por falta de Paracetamol no seu organismo, uma vez que, ao tomar este remédio, a sua dor de cabeça aliviou. Um absurdo, não? Mas esta manobra retórica está na base de boa parte dos estudos que buscam provar uma suposta causalidade orgânica para adoecimentos psíquicos. Tanto assim, que muitos diagnósticos – mal feitos – de transtorno psíquicos são realizados a partir da reação do paciente ao medicamento: se reagiu bem ao Rivotril, então é um ansioso. Se sente melhoras no seu dia-a-dia com Ritalina, então tem TDAH.
Aliás, recentemente saíram pesquisas que corroboram esta minha ponderação crítica, estudos realizados por cientistas respeitados e sem interesse financeiro direto no assunto, que não são ligados à indústria farmacêutica (para maiores informações a respeito, convido a leitor a dar uma olhada aqui.
Mas no que isso tudo afeta você, leitor?
Ora, quando você vai consultar um profissional de saúde, no mais das vezes você está em uma posição de vulnerabilidade, depositando naquele clínico um saber sobre o que lhe faz sofrer. No caso de sofrimento psíquico, os pacientes chegam ao consultório do psiquiatra, do psicólogo ou do psicanalista até mesmo sem condições de explicar o que lhes ocorre, sendo necessária uma minuciosa conversa para delimitar razoavelmente do que se trata o problema.
Em um contexto em que nos vemos fragilizados por sintomas depressivos, ansiosos ou qualquer outra forma de padecimento, a palavra que nomeia o nosso quadro pode acabar ocupando um lugar central na vida, sendo como uma espécie de imã que atrai todos os aspectos do cotidiano. Por exemplo, é absolutamente normal termos dias em que estamos mais para baixo, sem vontade de sair da cama ou entristecidos. Podemos estar em um momento de repensar a nossa carreira, preocupados com algum problema do trabalho ou mesmo estes atos sentimentos podem ter alguma causalidade inconsciente. Entretanto, não raro alguém que recebeu o diagnóstico de transtorno de depressivo vai referenciar estes aspectos cotidianos ao seu diagnóstico: “Fiquei triste com este filme porque tenho depressão” ou “Estou preocupado com a apresentação amanhã porque tenho transtorno de ansiedade”. Nestes casos, que são muito comuns, o paciente toma o diagnóstico como um nome próprio, identificando-se de tal forma aos sintomas do suposto transtorno a ponto de ratificar este diagnóstico, como uma forma de garantir, se não a cura, pelo menos a sensação de não estar sozinho com o seu sofrimento e, assim, fazer parte de um grupo (“os que têm TDAH”, “os depressivos”, “os border“).
Isso não implica, de forma alguma, dizer que não haja sofrimento – e muitas vezes sofrimento incapacitante – nestes quadros diagnosticados por clínicos competentes e sérios. O problema é quando acontece o que estamos vendo hoje em dia nos consultórios de psicanalistas: pacientes diagnosticados desde seus 5 ou 6 anos de idade como portadores de transtorno de ansiedade que, agora perto dos 30, já nem sabem mais o que de sua vida diz respeito a si mesmos e o que é uma adequação a este segundo nome que lhes foi dado há tanto tempo e que lhes dá uma sensação de pertença a um grupo.
Dar nome a um sofrimento é um procedimento difícil e exige muito cuidado por parte do clínico, justamente pelo risco de se acabar banalizando o uso de categorias diagnósticas que, boa parte das vezes, não têm embasamento suficiente a não ser aquele produzido por pesquisas que servem mais como propaganda de medições psicotrópicas do que como estudos que pensam o seu próprio método.
O cuidado que se deve ter é o de não se produzir um sequestro da história singular do paciente pela abstração dos critérios diagnósticos criados e amplamente divulgados pela indústria farmacêutica.