Na virada dos anos mil novecentos e setenta para os oitenta, tive minha primeira formação de espectador de bons filmes. Havia na avenida Osvaldo Aranha, em Porto Alegre, o cinema Bristol. Era uma sala menor que integrava o complexo dos cinemas do Baltimore.
O grande achado da programação do Bristol eram os ciclos. Durante cerca de uma semana, a cada ciclo, passavam filmes de um diretor com uma obra significativa. Assisti a ciclos de Carlos Saura, Bertolucci, Fellini, Woody Allen, Hitchcock, John Huston, Antonioni e por aí vai.
Era um cinema de uma empresa privada. Creio que a grande âncora que sustentava o negócio eram as salas maiores, do Baltimore. No entanto, era comum a pequena sala do Bristol estar cheia.
O modelo de negócio se assemelha ao que faziam grandes gravadoras de discos. Os trabalhos mais populares vendiam muito. Mas a gravadora, com esse lucro, podia lançar LPs de artistas com um trabalho interessante que vendiam menos. É uma mentalidade diferente do mercado atual em que o objetivo é ter lucro e mais lucro, independentemente do que venda.
Os filmes menos comerciais depois que acabou o Bristol – que foi embora com a derrocada dos cinemas que existiam fora dos shoppings – se espalharam, em Porto Alegre, sobretudo pelas salas públicas, como as da Casa de Cultura Mario Quintana e a Cinemateca Capitólio. Uma das exceções na rede privada foi o Espaço Unibanco, depois Itaú, que manteve em uma das salas, a menor, uma programação com boa seleção. Outra, o cinema do Santander Cultural.
Hoje, o que vem cumprindo a função do Bristol para mim é o aplicativo português Mubi. Já falei aqui nesse espaço sobre os filmes dos irmãos Dardenne que vi pelo Mubi. Agora, vi duas pérolas do cineasta dinamarquês Lars Von Trier.
A primeira é Dogville (foto da capa), de 2003. Dirão os muito ligados (com o tu porto-alegrense): “Mas tu ainda não tinha visto Dogville?”. Pois não tinha. É uma crítica sem piedade à origem social de todo um comportamento tacanho, fascista, que está na base da sociedade norte-americana. E tudo se desenrola dentro de um filme de gângsters, como se essa fosse a verdadeira matriz social e estética desse país capitalista. O cenário é todo aparente, como um cenário de teatro, com marcas de giz no chão separando os ambientes. No entanto, a crueza das cenas e dos diálogos acaba nos fazendo esquecer de toda a artificialidade do entorno.
A outra pérola do Lars Von Trier é “O Grande Chefe”, de 2006. É uma comédia, no sentido do gênero que mostra os seres humanos pelo seu lado pior. O foco da sua artilharia crítica agora é o ambiente empresarial da era da tecnologia da informação.
Por trás dos times, das políticas de afeto simulado, age o interesse egoísta do capital. Um ator é contratado para exercer o papel de presidente da empresa e, a partir daí, uma série de farsas se desenvolve, trazendo, ao fim, à tona tudo o que movia a ilusão empresarial em que os personagens viviam.
Se estivéssemos no início dos anos oitenta, certamente teríamos um ciclo Lars Von Trier no Bristol.