No dia 31 de maio de 1993, chovia sobre Porto Alegre. Eu havia chegado na cidade, vindo de São Gabriel, naquele mesmo dia, porque a então professora de uma cadeira de Direito que eu cursava como opcional na faculdade de Jornalismo havia insistido muito na semana anterior que daria aula independentemente da greve dos professores que havia sido aprovada pouco antes. E que não haveria abono de faltas por conta da paralisação. Na época, eu tinha 19 anos e era um jovem pouco afeito ao conflito, e tinha também a tendência que muito me complicou ao longo da vida de acreditar no que pessoas mais velhas diziam, então eu viajei para São Gabriel para passar lá uma semana já prevendo que teria que voltar na semana seguinte por esta única aula – essa professora específica era a única da minha grade curricular que insistiu em não liberar ninguém.
Passei a semana em casa, e meu pai, mais velho, mais experiente e mais esperto do que eu, tentou muito me convencer a não voltar à Capital, apresentando a conclusão que hoje vejo como lógica de que uma única professora não daria aula se todos os demais entrassem em greve. Mas na época eu não me convenci. Eu morava na Casa do Estudante, só estava conseguindo levar os estudos adiante porque cursava uma universidade pública e não queria vacilar e queimar de largada faltas que poderiam me prejudicar lá adiante, ainda mais porque não se sabia quanto tempo a greve duraria e vai que a mulher, tomada por algum imbatível espírito peleguista, resolvesse dar aulas durante todo o movimento. Peguei um ônibus da Planalto na segunda-feira pela manhã. Meu pai, apesar de seus compromissos que o deixavam ocupado ao longo de todo o dia, achou tempo para ir até a rodoviária e se despedir de mim minutos antes do ônibus partir.
Gostaria de escrever que essa despedida ficou essencialmente marcada em mim, palavra por palavra, que a recordo até hoje quadro a quadro como um filme, mas o fato é que não. Foi um dos nossos “tchaus” já corriqueiros e normais de quando eu precisava voltar a Porto Alegre. Fazia frio naquela manhã, e me lembro que ele vestia a jaqueta de nylon entre o bege e o amarelo-claro que habitualmente usava. Seu cabelo, que já havia recuado, expondo sua testa como uma parede, estava crescido e vinha se tornando mais grisalho de um jeito meio esquisito, não era como se estivesse branqueando, mas sim como se estivesse tisnado de cinzas, uma cor chumbo de um tom meio sujo. Lembro de pensar que ele deveria cortar o cabelo, mas não disse nada porque já era a época em que eu mesmo estava deixando meu cabelo crescer, e não tinha moral alguma para reclamar. Ao mesmo tempo, talvez eu devesse ter dito, uma vez que, sendo ele cego, não sei o quanto ele tinha conhecimento dessa mudança… cosmética em sua aparência, digamos.
Enfim, o que eu me recordo muito bem foi que ele insistiu mais uma vez para que eu ficasse – adoraria escrever “como se pressentisse alguma coisa”, mas sei que aqui é o fabulista interpretando fatos além da conta, algo com que vou ter que lidar ao longo desta investigação que se pretende íntima e emocional, mas, espero, nunca piegas.
Eu retornei a Porto Alegre, cheguei por volta de uma da tarde, passei uma vassoura no dormitório (eu dividia o apartamento com um estudante de Medicina que, a essa altura, continuava em sua cidade natal, São Luís Gonzaga, já que nenhum dos professores dele ameaçou seguir dando aula). Pensei em lavar roupas, mas o tempo estava meio nublado, então fiquei lendo e ouvindo rádio (a antiga 107.1, que na época já não era mais Felusp, embora muitos, principalmente na universidade, só a chamassem assim). Começou a chover. Como essa aula específica era ministrada ali mesmo nos prédios do Campus Centro, só dei de mão em um guarda-chuva, atravessei a avenida e fui para o diabo da aula que havia me feito voltar precocemente à Capital. Apenas para encontrar um cartaz afixado dizendo que a professora havia reconsiderado e que não haveria aulas naquele dia. Para dar uma ideia do quadro geral, devo lembrar que nessa época não havia celulares, não havia e-mail, WhatsApp ou redes sociais. Assim, confirmando que meu pai estava certo, como, aliás, muitas vezes estava, sim, era óbvio (como tudo é, em retrospecto). Pelo menos, para eu não me sentir tão ingênuo sozinho, encontrei na porta do prédio minha colega de jornalismo Ana Esteves, que também achou que teria aula e também foi ao campus em um fim de tarde de chuva só para dar com a cara na porta.
Aquela era uma época de grana curta, tanto lá em São Gabriel quanto no meu quarto de estudante em Porto Alegre, então eu não pensava em ir comprar a passagem de retorno tão logo. Em vez disso, fui até uma padaria que eu frequentava bastante na André da Rocha, comprei quatro pães cacetinhos, duzentos gramas de mortadela, cem gramas de queijo, um tablete daqueles quadrados de manteiga e voltei para a Casa do Estudante certo de que aquela seria minha janta e talvez meu almoço (com a greve, o R.U. só servia café da manhã aos residentes da Casa). Comprei também umas fichas de orelhão disposto a ligar para casa para avisar meus pais que, dependendo do desenrolar dos acontecimentos, eu voltaria a São Gabriel ainda naquela semana.
Quando cheguei, o servidor que atuava como recepcionista da Casa, um homem preto de meia-idade chamado Campeão, a imagem plena da elegância e com uma voz aveludada de barítono, me alcançou um bilhete. Minha mãe havia telefonado enquanto eu estava fora e ele anotara o recado. Como era uma circunstância algo rara, nem guardei as compras e me dirigi para o orelhão que ficava instalado no segundo andar da casa (onde também havia a oficina de alfaiataria do próprio Campeão, além de uma série de salas vazias que eram usadas para estudos ou redação de trabalhos durante a madrugada, quando o bater das teclas da máquina de escrever ameaçava gerar briga de morte entre os colegas de quarto ou mesmo entre os vizinhos de apartamento).
Liguei para avisar que talvez voltasse ainda naquela semana, mas minha mãe cortou minha saudação jovial com uma voz preocupada: meu pai havia sofrido um acidente e estava internado na Santa Casa, em São Gabriel. Era palpável a sua preocupação, mas ela me disse que haviam informado que ele estava sendo atendido no momento e que talvez não fosse nada grave. Haviam desaconselhado que ela fosse ao hospital por enquanto (o que seria por si só uma operação de alguma dificuldade logística, considerando que minha mãe estava em casa cuidando de duas crianças, dois dos meus irmãos mais novos, que na época tinham cinco anos e um ano e poucos meses).
A situação havia mudado. Garanti à minha mãe que estaria na cidade no dia seguinte o mais cedo possível. Deixei finalmente as compras no quarto, mas não comi. Havia um posto de passagens naquela mesma quadra (hoje não há mais), mas já estava fechado naquela hora, já início da noite. Então, peguei um ônibus até a rodoviária, comprei uma passagem para São Gabriel no primeiro horário disponível (6h45min da manhã, pela hoje extinta empresa ABC). Voltei para casa e, esquecido das compras, fui me dedicar, com um misto de inquietação imprecisa e de um sentimento cansativo de repetição, a refazer a bagagem na mochila que eu havia desfeito naquela manhã.
Pensava o tempo todo em duas informações que me pareciam contraditórias: o fato de que haviam informado à minha mãe que estava tudo bem, mas que haviam desencorajado sua ida ao hospital. Parecia haver na confusa oposição subjacente a essas duas informações um zumbido permanente, provocando um desconforto físico. Que, a certo momento, talvez eu tenha tomado por fome, porque umas duas da manhã finalmente fiz um sanduíche com o que havia comprado. O resultado foi que a azia resultante me tirou de vez o sono.
No dia seguinte, 1º de junho, acordei cedo, tomei banho e estava me vestindo quando alguém bateu à porta do dormitório (número 535, encravado em um nicho no fundo do corredor no quinto andar). Abri a porta e lá estava meu tio Manoel. Ele também morava em Porto Alegre, mas nos víamos menos do que devíamos por esses compromissos do mundo, eu não o via há meses.
A própria visão incongruente de meu tio, irmão de meu pai, parado naquele corredor frio, me informou tudo o que havia para saber, mas eu acho que me recusei a entender, porque passamos pelo teatro do diálogo que se seguiu.
“Meu filho, te avisaram que o teu pai sofreu um acidente, né?”
“Sim, tio. Falei com a mãe ontem. Tou indo pra São Gabriel daqui a pouco no ônibus das quinze pras sete”.
“Te informaram da… gravidade real desse acidente?”
Lá estava. A informação que a própria presença de meu tio já deixava entrever, mas que eu me recusava a aceitar. Não me lembro de ter dito mais nada a não ser “não”. E de chorar alguns minutos abraçado ao meu tio, sofrendo no processo uma desconcertante experiência de divisão da consciência. Parte de mim afundava no choro e às vezes urrava com um animal. Outra parte parecia me ver de fora e pensar no fiasco que eu estava fazendo na porra do corredor da Casa do Estudante, um lugar que definitivamente não era para esse tipo de manifestação.
Meu pai havia sido atropelado enquanto atravessava a rua da rádio onde trabalhou por anos, a Batovi. Havia sido levado para a Santa Casa, realmente bem próxima do local do acidente. O choque de sua cabeça com o solo, provocado pelo atropelamento, gerou lesões irreversíveis e, apesar dos esforços da equipe médica, ele faleceu. Morreu com 46 anos – quatro a menos do que eu tenho agora, e nunca consigo deixar de ficar dando voltas a esse fato. Meu pai morreu mais novo do que eu. Mais novo do que sou agora, claro, mas acho que a frase carrega mais força poética e mais impacto assim mesmo, desse jeito. Se um dia anotações como esta virarem um livro ou algo assim, com certeza esse será o título.
O veículo que o colheu foi uma caminhonete dirigida por um cara no máximo cinco anos mais velho do que eu, filho de um dono de terras com muito dinheiro – hoje o chamaríamos de um dos “playboys” da cidade, talvez, mas não usávamos esse léxico naquele tempo em que essa palavra circulava majoritariamente como o nome de uma revista. Curiosamente, numa cidade daquele tamanho, minhas únicas memórias desse cidadão em particular são posteriores ao momento em que seu flamante veículo e meu pai dividiram alguns segundos letais de contato. Muitos dos meus colegas de colégio o conheciam, mas eu não tinha lembrança alguma dele. Aliás, toda vez que revisito minha infância em São Gabriel, o sentimento que sobra é de uma perplexidade confusa, porque aparentemente todo mundo se conhecia naquele buraco, menos eu, talvez muito ocupado com o universo particular no qual eu me refugiava na minha própria cabeça.
Não me reconheço nos clichês psicanalíticos sobre matar o pai. Nunca tivemos conflitos muito sérios por praticamente nada e em momento algum achei que seu exemplo ou sua presença eram asfixiantes, ou de algum modo paralisantes. Eu gostava de meu pai. E eu gostava de ser filho dele. Como ele morreu jovem e eu era mais jovem ainda, talvez o que aconteceu foi que até mesmo esse tempo, o da discórdia, viria e nos foi roubado.
Meu pai era cego e político de esquerda numa cidade de Interior conservadora, comprou umas brigas feias com alguns políticos poderosos de seu tempo — e, demonstrando que o conservadorismo da cidade não mudou depois que me mudei de lá, algumas das mesmas figuras daquela época ainda se alternam no poder hoje. Sofreu. Sei que sofreu, havia nele uma tristeza nunca dita por baixo da alegria de viver que também era genuína – quando penso no retrato que fiz dele em meu romance. Tudo o que fizemos, acho que falhei em captar essa alegria da qual todos falarão. O pai mostrado naquela narrativa é mais melancólico. Talvez porque a melancolia fosse minha.
Pensei nele todos os dias da minha vida desde que ele morreu, um mês antes de completar 47 anos. Só três anos a menos do que tenho hoje. Então, o lance é o seguinte: eu tenho 50 anos e não tenho meu pai há mais de 30 anos, e eu estaria mentindo se dissesse que sinto tristeza — a tristeza sempre esteve lá, mas é mais do que isso, é raiva, raiva porque meu pai morreu atropelado por um playboy (acho que hoje podemos usar o termo com tranquilidade) em um crime de trânsito que não gerou consequência alguma.
Ah, sim, o mesmo cara que matou meu pai nesse acidente se envolveu em outro sinistro, digamos assim, uns anos depois. Na BR-158, ali pelo início dos anos 2010, o veículo dirigido pelo cidadão em questão (outra caminhonete, aliás) bateu na traseira de outro carro. O veículo em que ele bateu saiu da estrada em consequência da trombada e se chocou contra uma árvore. Em consequência, o motorista, um sexagenário natural de Dom Pedrito, morreu. Não quero com isso fazer nenhuma ligação entre os dois casos, só pontuar uma coisa que é um fato: enquanto a maioria dos motoristas guia carros uma vida inteira sem que nada de mais grave aconteça, esse personagem específico já se envolveu em dois acidentes com vítimas fatais.
Anos depois, o personagem atropelador ganhou um título de cidadão emérito da Câmara de Vereadores da mesma cidade conservadora em que nasci e em que meu pai morreu (aliás, a mesma Câmara na qual meu pai foi vereador entre 1973 e 1988). Ao contrário da presença incongruente de meu tio no corredor da Casa do Estudante, essa homenagem dúbia de um parlamento que condecora o responsável pela morte de um dos seus integrantes não me surpreendeu nada.
Como o último domingo foi o Dia dos Pais, aquele em que memórias e afetos e recordações e jantares e encontros e jogos de futebol e passeios e viagens e demonstrações de amor tomam as redes sociais por aqueles que têm a sorte de ter seus pais ainda vivos ou por aqueles que têm a sorte um pouco menos feliz de já os terem perdido após um longo período de convivência, achei por bem compartilhar com vocês, meus queridos seis ou sete leitores da Sler, um trecho deste trabalho em progresso que comecei a escrever este ano e que, pretendo, talvez vier algo mais alentado no futuro. Faço isso como uma forma de eu mesmo dividir com vocês alguns sentimentos provocados pela data – diversos da maioria, claro. Porque, embora reconheça a beleza das demonstrações de afeto alheio nas redes sociais, o que sei sentir quando penso no Dia dos Pais é raiva.
Raiva de uma ausência de mais de 20 anos que me ensinou tanto sobre a vida e o mundo quanto meu pai havia me ensinado com sua presença nos 20 anos anteriores.
Foto da Capa: Acervo do Autor
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