Luiz Carlos Maciel gostava de lembrar que na época dos primeiros anos do Pasquim havia um certo confronto entre duas turmas: a do fuminho (obviamente fazendo referência aos que faziam uso constante da maconha, como o próprio Maciel e Jorge Mautner (foto da capa), sob a proteção de Tarso de Castro) e a do uísque (autoexplicativa, e que reunia Millôr Fernandes, Ivan Lessa e Paulo Francis). Estes últimos achavam que Tarso – através da coluna Underground, de Maciel – havia aberto as portas do Pasquim para os malucos. Num primeiro momento, Tarso – que chegou a flertar com a contracultura deixando o cabelo crescer – se divertia. Porém, com a sua saída, a coisa ficou ainda mais séria
Primeiro foi Maciel, que mesmo com a demissão de Tarso optou por continuar escrevendo para o jornal. Passado um tempo, Maciel foi chamado e comunicado: “Olha, Maciel, você pode parar de escrever porque o Millôr já deu ordem de que a você ele não paga, O Pasquim não paga nem um tostão”. Maciel resolveu, literalmente, pagar para ver e contrapropôs: “Não faz mal, eu vou escrever de graça para o Pasquim”. Mas não aguentou manter a provocação por muito tempo: “Eu ainda escrevi de graça por algumas semanas, depois enchi o saco e parei”. Neste período, Mautner também atuou como interino na coluna, escrevendo na ausência de Maciel, quase sempre sobre sua relação com Caetano e Gilberto Gil. A partir do número 135 nem um nem outro estariam mais nas páginas e Underground deixaria de existir.
A disputa entre as duas turmas chegaria ao ápice depois de uma polêmica envolvendo Noel Rosa. Em um artigo escrito para a edição 133, de janeiro de 1972, Jorge Mautner abre o texto classificando o compositor como “um poeta kafkiano, tumultuada alma genial urbana” para logo no segundo parágrafo concluir que Noel Rosa, “o atormentado gênio da pequena burguesia nacional de 1930”, era antissemita. Para Mautner, a comprovação estava em versos como “a vida cá em casa está horrível/Ando empenhado nas mãos de um judeu”. E conclui: “A única grande crítica que faço a Noel Rosa é seu antissemitismo”.
A réplica, ainda mais virulenta, seria dada por Millôr Fernandes três edições depois. O título era “Em defesa de Noel Rosa” com a resposta ao autor de Maracatu Atômico sendo dada de maneira oblíqua a partir do subtítulo “a propósito da nota do Ivan Lessa”. Começava assim: “Olha, Ivan, não aguento mais este jornal, este tal de Pasquim. Fizemos este jornal juntos, uma meia dúzia de velhos e eu, o único jovem do grupo” e seguia num longo parágrafo em que dizia inclusive que o jornal havia sido “assumido por tudo quanto é espécie de mistificação, pretensamente ‘do nosso lado’. Mautner só seria citado diretamente no parágrafo seguinte, já com uma dúvida intelectual – “É bem verdade que o autor não existe. Isto é, nunca o vi” – e chamando para a briga, além do já citado Ivan Lessa, outro opositor: “O Francis, dos Estados Unidos, me escreveu várias vezes protestando contra as besteiras dos artigos dele disfarçadas de psico-metaficismo, e você, daí da Inglaterra, não se conteve! Graças a Deus, ainda há juízes em Londres e Nova York”.
Ainda na linha de duvidar da existência do autor do artigo, Millôr prossegue: “Mautner deve ser um pseudônimo a mais nos tantos que venho combatendo desde o início do jornal”. Logo a seguir, Millôr traz Caetano Veloso para a conversa – “Este pseudônimo tem escrito artigos só para endeusar da maneira mais absurda e mais ruborizante (eu, Caetano, morreria de vergonha se um íntimo meu, Francis ou Ziraldo, começasse a escrever diariamente nos jornais, artigos dizendo que eu sou um santo, eu sou lindo, eu sou um papa, eu sou Deus)” – e pergunta: “Agora, você já viu, Lessa, algum artigo do Mautner (e outros pseudônimos do Jaguar) afrontando, de verdade, um poderoso do dia, mesmo que seja esses poderosos de Caderno B?”.
Só então o tema da polêmica, Noel Rosa, entraria na coluna. Millôr começa flagrando um anacronismo, lembrando que Mautner havia escrito que Noel Rosa “a tumultuada alma genial urbana (…) durante o muito famoso Estado Novo de Getúlio Vargas” o que revela sua ignorância histórica, já que Noel morreu em maio de 1937 e que o Estado Novo só começaria em novembro do mesmo ano. Finalizando, Millôr seria ainda mais agressivo: “Mas tudo isso eu perdoava se não fosse essa ignominia, essa leviandade inadmissível, no articulista (por tabela na editoria deste jornal), de chamar Noel Rosa de antissemita, só porque ele fala em judeu”. E o encerramento é quase como chamar alguém para briga em praça pública. “Acho o artigo, toda essa artigalhada, toda essa posição impostada e intelectualizante inteiramente artificial e contra a cultura verdadeira que conheço e pode até ser pobre, mas é a única eu que tenho: a cultura do Méier, bairro que compreende (duplo sentido) Vila Isabel. Mautner; não acho você sério. Se percebe?”.