“Canta tua aldeia e serás universal” é uma frase famosa do León Tolstói. Uma história contada por Milton Nascimento num pequeno vídeo que vi no Instagram me fez pensar em colocar um adendo na frase do grande escritor russo do século XIX.
Milton conta que estava em Los Angeles, na piscina do hotel, e veio falar com o ele o Maurice White, criador do Earth, Wind and Fire. O grupo estourou mundialmente a partir de 1975, botando todo mundo pra dançar com soul, funk, disco, em canções como “September”, “Boogie Wonderland”, “Let’s Groove”, entre outras.
White disse que queria há muito tempo agradecer ao Milton por ser a inspiração e a motivação para a criação da banda. Maurice ouviu Milton cantando no álbum Native Dancer, feito em parceria com o saxofonista e compositor estadunidense Wayne Shorter. Foi para cantar como Milton, com seus efeitos vocais, falsetes, que ele botou um anúncio no jornal convidando músicos pra formar uma banda. Como não conseguiria cantar tudo sozinho, todos os canais de vozes, fez um grupo para distribuir todo o vocal. E assim nasceu o projeto.
A canção que abre o disco Native Dancer é “Ponta de Areia”, parceria do Milton Nascimento com Fernando Brant. A música fala do fim da estrada de ferro que ligava Araçuaí, interior de Minas Gerais, até o distrito de Ponta de Areia, em Caravelas, na Bahia. A desativação é cantada na letra e causa diversas mudanças na região e na vida das pessoas.
Vejamos: começa com “Ponta de Areia, ponto final”. Já na arrancada tem o jogo entre esse ponto de final do trajeto, o porto da cidade, e o ponto final de término, de encerramento da ferrovia. Segue com “Da Bahia a Minas, estrada natural”. Era um caminho tão integrado ao cotidiano e à história do lugar que ganha na letra o adjetivo de natural.
Ligava Minas, que não tem mar, “ao porto (de Ponto de Areia, na Bahia), ao mar/caminho de ferro/mandaram arrancar”.
Quem mandou arrancar? A política de adesão aos veículos movidos a derivados do petróleo do governo da ditadura militar brasileira. A malha ferroviária foi destruída em favor dos petrodólares. “Maria Fumaça não canta mais/para moças, flores, janelas e quintais/Na praça vazia, um grito, um ai/casas esquecidas, viúvas nos portais”.
Milton e Brant estão cantando, como disse Tolstói, a sua aldeia. Mas não bastaria isso, digo eu, para serem ouvidos para muito além dela. Em primeiro lugar, tem o feliz encontro entre o andamento do trem, a letra e as subidas da melodia. Em segundo, a interpretação e todos os efeitos vocais do Bituca. Essa interpretação ganha tal vida e tal autonomia que o Maurice White, talvez mesmo sem saber do que a canção tratava, foi tão profundamente tocado que tomou a decisão de seguir disseminando a força dessa experiência estética de ouvir o Milton, criando uma nova banda.
Então, o meu adendo ao Tolstói é o seguinte: dependendo de como você canta a sua aldeia, você pode ser notado para muito além dela.