Imagino que os mais perceptivos dentre vocês aí, meus seis ou sete leitores, tenham se dado conta de uma coisa curiosa na minha coluna da semana passada: era a republicação de um texto que já havia saído neste espaço exatamente um ano antes, versando sobre literatura e política, um texto do qual gosto, aliás, mas não é como se um opinador contumaz como eu tivesse material para apenas um ano de coluna semanais e agora vou ficar apenas republicando ad infinitum meus textos menos constrangedores, não, não é isso. O que aconteceu foi que eu não consegui mandar o texto da semana passada para o nosso nobre e abnegado editor Luiz Fernando Moraes.
É algo de que não me orgulho, mas é que eu estava me divertindo tanto em uma experiência nostálgica de retorno a tempos mais simples que eu simplesmente perdi o prazo e o Luiz Fernando teve que reprisar texto antigo. Eu estava, pra ser sucinto, curtindo adoidado os diferentes estágios de uma gradual viagem no tempo proporcionada pelo esforço denodado de nossos principais governantes locais.
O primeiro estágio dessa jornada idílica a tempos menos cínicos se deu na noite de quarta-feira, em que, após 24 horas sem luz devido aos temporal que atingiu o Estado na noite de terça-feira, eu e minha mulher nos dedicamos a cozinhar um alentado jantar com tudo o que inevitavelmente estragaria na geladeira – em um golpe de infortúnio, era muita coisa, havíamos feito o supermercado no domingo, e eu ando precisando emagrecer, e claramente a função toda daquela comilança não ajudou muito.
Mas ter a oportunidade de ser lembrado do valor de um romântico jantar à luz de velas após uma relação de quase duas décadas é uma preciosidade, então é algo pelo que sempre serei grato à CEEE Equatorial, à forma como ela administra as ocorrências de falta de luz nesta nossa Porto Alegre. Pensamos até mesmo em caprichar na decoração com as cores vermelho e preto, combinação muito evocativa do período Romântico, mas dado o estado de breu de nosso apartamento só conseguiríamos distinguir as cores do tecido chegando aproximando das velas, o que não achamos muito recomendável em termos de segurança.
Outro estágio fascinante da viagem do tempo que nos foi proporcionada pela gestão de crise da empresa que administra o fornecimento de luz, e que não para nem um minuto, muito menos para atender gente reclamona, mesmo que o reclamão seja o prefeito da Capital do Estado, foi a oportunidade de contemplar um estágio de civilização um pouco mais próximo de nós, mas hoje tão distante no tempo que parece difícil acreditar que ele existiu. Depois de uns dois dias sem luz, a bateria do celular arriou completamente, e foi uma delícia lembrar de tempos mais simples nos quais não éramos tão demandados por esse dispositivo do demônio, saíamos do trabalho e não havia forma de ninguém nos mandar mensagens e nem mesmo nossa mãe saberia nos encontrar quando saímos à rua.
Foi como reviver momentos gloriosos que eu só acompanhei de relance nos anos 1980, quando era criança (imagino que quem se beneficiava desse tipo de arranjo era o meu pai, minha mãe, como a maioria das mulheres da idade dela naquele tempo, ainda sentia sobre si a pressão sutil do patriarcado e ficava a maior parte do tempo em casa). Aliás, a própria ideia de passar uma semana no escuro foi uma visita à infância em São Gabriel, lugar sujeito a periódicos apagões naqueles selvagens anos 80 (aliás, pelo que andei ouvindo de parentes e conhecidos em cidades do Interior servidas pela RGE, a outra concessionária privada do serviço de energia, não mudou muito, é só meu saudosismo falando).
O problema, claro, é que mesmo com a cidade em caos e virada do avesso, você ainda precisa trabalhar, e como a falta de luz, de internet e até de rede telefônica torna inviável o teletrabalho, melhor ir mexendo essa bunda gorda (ainda mais depois do lauto jantar romântico à luz de velas) até um ponto de ônibus que não esteja na região que teve tráfico desviado para limpeza das árvores destroçadas. Bom que você já faz um exercício enquanto caminha entra ruas aleatórias tentando encontrar o ônibus que te levaria direto para o trampo e finalmente desiste e volta a um lugar em que você possa pegar dois ônibus. Uma oportunidade de ouro proporcionada a você, citadino desconectado do cotidiano de sua Capital, para se reconectar com o ritmo da cidade (entrecortado devido aos constantes bloqueios e ao fato de que as sinaleiras não estão funcionando) e com o verde que ainda nos cerca e que sobreviveu até agora, contra todas as expectativas, à sanha das últimas administrações alinhadas com as empreiteiras – aliás, a semana passada não foi só de viagem no tempo, foi de rever conceitos. Eu achei que, dada a tara da administração municipal por cortar árvores, o que não faltaria nos galpões da Prefeitura seriam motosserras, entendimento equivocado desfeito pelo apelo desesperado do atual prefeito para que a população emprestasse as suas. Vivendo e aprendendo.
Bom, o passeio de ônibus também é uma oportunidade de conhecer novos lugares da cidade que você mora e indesculpavelmente não conhece, dado o número necessário de desvios. Me lembra de quando mudei para Porto Alegre e eu pegava ônibus aleatórios no fim de semana munido de um maço de páginas de mapas arrancadas de um exemplar impresso do Guia de Ruas Achei acompanhando o trajeto no mapa para me ambientar com a nova e, para mim, gigantesca cidade. Claro, naquele tempo havia mais ocasiões de passe livre e tínhamos até uma linha que passava de hora em hora na madrugada, uma mão na roda para quem queria fazer uma festa mas morava longe. Não sei nem explicar algo assim para muitos dos mais jovens já nascidos sob o novo laissez faire que é a tônica das administrações mais recentes, em que é melhor você ter uns 20 pedestres atropelados por dia e centenas morando na rua do que mexer com o mercado, coitado dele…
É a reconexão com o verde que se torna um pouco mais complexa pelo fato de que a prioridade da prefeitura sempre será liberar o fluxo de automóveis. E a equipe que corta as árvores não é a mesma que as recolhe, assim, para liberar o trânsito dos carros, havia pilhas de galhos tomando toda a calçada de pedestres. Foi um dos poucos pontos realmente chatos desse rolê ao passado que a Equatorial nos ofereceu quase de graça (porque vou considerar a conta de luz que eles vão nos cobrar como o ingresso para esse tour magnífico).
Então, ficam aqui as minhas sinceras desculpas por não ter apresentado texto novo semana passada, eu estava me divertindo demais no tour a um passado que não vivi por completo e me diverti demais e não consegui mandar o texto (até porque, para viver a experiência por completo, estava sem internet). No momento em que escrevo este texto, aliás, começou a chover de novo aqui em Porto Alegre, então decidi fazer uma crônica bem mais curta desta vez. Vai que o pessoal da Equatorial se empolga e resolve nos dar um repeteco de um mundo sem eletricidade? Então achei melhor ser mais sintético e enviar este texto de uma vez antes que eu seja interrompido por uma eventual falt
Foto da Capa: Acervo do Autor