Eu escrevo muito sobre minha mãe. Talvez passemos a vida resolvendo nossa filiação para nos entendermos como alguém no mundo. Escrevo sobre a mãe que tive, a mãe que não tive, a mãe que fantasiei, a mãe que já perdi e a mãe que nasceu depois que ela partiu fisicamente, há quase 13 anos. Essa mãe que passou a existir depois de sua morte física é altamente complexa e talvez até mais presente que as anteriores. Ela sobrevive em mim de maneiras impensadas e criativas. Algumas peças de roupa que ainda resistem como herança, o amor à música e a cantar alto no carro. O resto já é composição minha.
A vinte dias de completar 46 anos, ainda me impressiona estar alcançando essa idade. É minha mãe quem parou nos 46 na minha cabeça, mesmo que cronologicamente tenha parado aos 61. A imagem que temos de uma mãe de 46 (ou a que eu fazia na década de 90) é de uma mulher muito diferente da que nos percebemos ao chegar nessa mesma fase da vida. Fazer aniversários sempre me comove e surpreende. Gosto de procurar fotografias antigas nesse tal período chamado inferno astral. Em minha busca mais recente, encontrei uma foto de um momento aparentemente corriqueiro, meu e dela, na mesa da sala de jantar. Parecia manhã: eu, sentada com o uniforme da escola, queixo apoiado na mão, cotovelos na mesa e um ar sonolento. Ela, com seu hooby rosa de seda que eu amava, em pé ao meu lado, servindo café preto. Cabelos um pouco desgrenhados, cara de sono. Não lembro por quanto tempo ela fez café da manhã antes de o meu pai me levar para a escola diariamente. Olhei no canto da fotografia, que antigamente continha escrito o mês e o ano em que foi revelada. Outubro de 1993. Ela tinha 46 anos recém-feitos.
Eu sou ela daqui a 20 dias. Não é possível que eu seja essa mulher servindo café a uma filha de então 14 anos. Claro, eu não sou ela, somos muito diferentes e a idade é apenas um número, mas é impressionante a mudança nos tempos e ideologias que fazem uma mulher de 46 anos hoje ser absolutamente diferente de uma mulher com a mesma idade no ano de 1995. Mas serão tão diferentes assim?
Algumas coisas não mudam com as gerações. Certamente minha mãe não se entendia como o que então se pregava natural para “uma mulher de 46 anos”. Aliás, o que é uma mulher de 46 anos? Só hoje entendo essa busca que não acaba e que perpassa gerações. Talvez minha filha me enxergue de uma maneira que eu jamais conseguiria demovê-la, e talvez nem devesse. Uma filha precisa confiar no feminino da mãe. Uma mulher que parece saber o que fazer com as coisas todas do mundo, saber os caminhos e como resolver essas todas as coisas do mundo. A gente nunca pode saber antes do tempo – ou não poderia – que mães não sabem resolver as coisas, que elas fazem o que podem, que se confundem, têm medo e erram. Muito. Quero que minha filha possa me enxergar vulnerável um pouco antes do que percebi minha mãe, e obviamente de um jeito muito, mas muito menos fatal do que eu a vi.
Esse é um recado singelo para os meus 46 que estão prestes a se completar. Eu ainda me enxergo em muitos momentos como a menina tentando entender a própria mãe, quase simultaneamente a outros em que me vejo como uma mulher tentando entender as necessidades da própria filha. E a mulher que hoje sou transita nesse redemoinho furacão entre o que não passou e o que luto para que passe de mim adiante. Aniversariar é reinaugurar-se a cada dia em que se nasceu. Bater palmas no “parabéns a você” é aplaudir a persistência de aprofundar a existência a cada ano. Inferno não é isso. Infernal são os outros dias todos em que não há aplausos, nem bolo, nem abraço. Os desaniversários onde nada de grande acontece, onde envelhecemos discretamente a cada hora. Eu não quero perder nada enquanto vou perdendo, aos poucos, diariamente, as certezas que já tive.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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