Era mais uma manhã, eu chegava no colégio com um pote grande de bolo de chocolate cheio de expectativas, esperanças e vontade que o tempo passasse rápido para poder chegar a tal universidade, que me daria acesso ao mundo que imaginava de independência, vivências e principalmente longe de qualquer limitação.
Aquela manhã, eu resolvi andar um pouco mais pela sacada onde os adolescentes como eu ficavam buscando ávidos por seus amigos para falar das matérias, dos professores ou apenas estarem lá na sacada para se mostrarem incluídos naquele universo que chamávamos de 2o grau.
Sim, éramos estudantes por volta dos 14 anos, ingressando no tal 2o grau, na escola lendária do ensino público gaúcho: o famoso Julinho. E, naquela manhã, meu olhar parou sobre um menino alto, magro, de cabelos pretos lisos, um rosto alegre, olhos brilhosos de regata amarela, calção de surfista, tênis e um sorriso debochado. Caminhei até ele e ofereci: quer um bolo? Ele olhou e disse: quero. Pagou. Minha 1ª venda. Depois dele, os outros olharam e vendi meu pote em 10 minutos. E ele ficou olhando encostado na varanda com um sorriso aberto de canto, e quando vi entramos na mesma sala. A 1B. O ano havia começado na escola nova e eu nem sabia, mas eu já tinha um amigo e ele se chamava: Ricardo Athanazio Felinto de Oliveira.
Todo dia eu levava bolo e todo dia ele comprava meu bolo. E, como sempre fui conversadeira, vendia os bolos e procurava meu amigo no recreio onde ficávamos rindo na sacada, onde eu o enchia de perguntas e descobri que não morava com a mãe, e sim com o pai. Que tinha uma irmã. Que amava gatos. Que adorava debochar dos professores, que falava as maiores atrocidades com um jeito sério e autoridade que eu sempre acreditava.
Dos recreios, passávamos pelas aulas de francês, depois para o time de handebol, depois para a política estudantil, para a troca de ideias sobre arte, música… eu via o meu amigo se tornando popular e tomar uma dimensão na escola, com outros amigos e daqui a pouco já éramos uma turma sempre liderada por ele, explorando o Bom Fim, tomando as primeiras cevas sentados no fio da calçada do Ocidente, na frente da funerária Pio XII.
O pote de bolo que eu vendia foi deixado de lado pelas passeatas que íamos, pelas idas à tarde para ver videocassete, pelo show da Legião Urbana no gigantinho, pelas idas a praia no apartamento de Capão, onde eu era o alvo das brincadeiras debochadas e reações iradas. Olhando hoje eu ganhei um irmão naquela manhã de março de 1986.
Inteligente de doer, brilhante, ele rodou no 2º ano… a vida social, a estética punk e as namoradas tomaram a mente do meu amigo. Mas eu sabia que ia ser só uma fase, pois uma coisa que aprendi a ver nele era o senso de liderança e capacidade fazer acontecer. Mesmo não estudando mais no mesmo colégio, ele ia na saída encontrar a galera e sempre nos mantivemos em sintonia.
Eu não podia rodar… na real, eu não me permitia respirar. Queria entrar na universidade logo. E, assim como acontece nos filmes, esta época foi difusa, e chega a me lembrar o filme: “Um dia”. Todo ano acabávamos nos encontrando e nos atualizando… ele entrou na engenharia, aí mudou para o direito, passou a trabalhar em um grande escritório, casou-se pela 1ª vez, separou, defendeu causas que se tornaram jurisprudência, procurou o amor e a família até chegarem José e Helô, viveu e vive todos os momentos de um grande inquieto e intenso.
Meu amigo é capricorniano, com ascendente em deboche e lua em sem limites. Meu amigo tem jeito de sério, mas é a pessoa mais bem-humorada que conheço, meu amigo é pé no chão, mas também tem a cabeça na lua e nas estrelas.
Meu amigo está completando mais um ano hoje. Meu amigo é meu espelho, pois me mostra outros lados de mim. Por isto, eu dedico esta coluna a ele que nunca se esqueceu de mim, que já me mostrou o caminho da luz andando de jet sky, que faz resenhas memoráveis de livros densos, que me manda vídeos de NY e de seu vôo na Emirades.
E, principalmente, que me mostra que a amizade pode existir neste mundo cheio de fake news, ilusões, sexismo e racismo. Nossa vida já se cruzou, se desencontrou, seguiu caminhos diferentes, mas ele sempre continuou sendo o menino que viu que eu precisava vender aquele 1º pedaço de bolo para ter coragem de continuar. Descobri isto anos depois quando soube que ele nem gosta de doce.
Feliz vida meu amigo!!