Josué Guimarães nasceu em 1921, na cidade gaúcha de São Jerônimo. Foi um autor que, muito antes de se tornar escritor, já tinha vivido o suficiente para umas duas ou três vidas, tanto como jornalista cobrindo fatos cruciais do seu tempo quanto como homem de ação política. Foi vereador pelo PTB em Porto Alegre nos anos 1950, foi aliado político e amigo de João Goulart, com quem trabalhou não apenas na Secretaria de Justiça do Rio Grande do Sul como também na Agência Nacional durante a presidência do político gaúcho. Como repórter do jornal Última Hora, foi um dos primeiros jornalistas do país a cobrir a União Soviética e a China. Foi também um nome importante durante a resistência da Legalidade em 1961 e, cassado na sequência do golpe de 1964, viveu anos na clandestinidade. Nos estertores do regime, já de volta ao jornalismo, escrevia colunas combativas na grande imprensa sobre escândalos e arbitrariedades da ditadura que estava acabando, mas ainda se recusava a ir embora.
Com tudo isso, seu ingresso no universo da ficção se deu relativamente tarde, aos 49 anos, com um volume de contos, Os Ladrões, publicado em 1970. Mas já em seu livro seguinte, A ferro e fogo: tempo de solidão (1972), Josué Guimarães apresentou uma obra de ambições grandiosas: a reconstituição melancólica e carregada de simbolismo da experiência da colonização alemã no Rio Grande do Sul. O volume seria seguido por A ferro e fogo: tempo de guerra, em 1975, e Josué tinha planos de encerrar uma trilogia com um último romance sobre o massacre dos Muckers, um episódio real ocorrido no Rio Grande do Sul durante o século XIX, mas que não conseguiu concluir devido à sua morte em 1986.
O longo hiato entre os dois primeiros volumes e o suposto terceiro se justificava pelo próprio método de composição de Josué Guimarães (e provavelmente aquele que o impediu de concluir a saga). O autor não era dos que se debatiam em uma luta encarniçada com originais e versões, em vez disso, preferia ir escrevendo o livro “em sua própria cabeça”. São frequentes os depoimentos de seus amigos e interlocutores relatando como Josué os “atualizava” do desenvolvimento de seus trabalhos ponto por ponto em conversas longas e agradáveis. De tal modo que, quando sentia haver concluído em suas elucubrações tudo o que desejava plasmar num livro, o trabalho de sentar e escrever era razoavelmente rápido.
A obra-prima
Com esse método, e como que para compensar a estreia tardia, Josué publicou em rápida sequência mais de 20 livros em um intervalo de 16 anos, incluindo conto, romance, novela e literatura para crianças. Uma obra na qual se destacam Os tambores silenciosos, alegoria sobre a ditadura em uma cidade pequena, de 1977, ou Dona Anja, de 1978, em que um grupo de políticos respeitáveis de uma cidade do interior se reúne para acompanhar pelo rádio, em 1977, a votação da lei do divórcio, que pode “acabar com a família brasileira”. O detalhe mordaz é que essa reunião se dá no bordel da cidade, propriedade da Dona Anja do título.
Mas é em 1980 que Josué Guimarães traz a público aquela que é até hoje apontada por muitos como sua obra-prima e seu romance de maior impacto, Camilo Mortágua, uma longa e densa narrativa que comprime em quase 500 páginas uma saga familiar, um relato cru e tenso do golpe militar de 1964, uma melancólica crônica da decadência do universo rural, além de algumas cenas de profundo impacto e que parecem ter sido escritas ontem.
A trama
Camilo Mortágua é a história da vida de seu personagem-título. A “moldura” estrutural do romance abarca os cinco primeiros dias de abril de 1964, quando os militares dão o golpe que depõe João Goulart e começam as primeiras prisões e perseguições de prováveis elementos “subversivos” com ligações reais ou simplesmente supostas com o grande inimigo dos milicos do período: Leonel Brizola.
Camilo é um homem já sexagenário. Nos primeiros dias de abril de 1964, mora numa pensão no bairro Azenha, em Porto Alegre, numa região que, à época da narrativa, é um espaço ocupado por oficinas mecânicas, lojas de autopeças, pequeno comércio, pensões populares e casas de prostituição. As primeiras 70 páginas do romance mostram Camilo como um homem desenraizado, melancólico, vivendo desajustado no universo proletário que o cerca. Mergulhado nas lembranças de seus próprios dramas pessoais, passa os dias distraído e às vezes um tanto ausente da realidade, ao ponto de ignorar ou sentir indiferença por dramas reais que ocorrem à sua volta, como a ciranda de paixões e mesquinharias de seus colegas de pensão ou o modo atabalhoado como Porto Alegre se adapta à nova realidade política, com as constantes prisões e arbítrios realizados pelos militares recém-chegados ao poder.
Camilo parece oscilar entre o presente e o passado, ao ponto de ser engolfado pela nostalgia e ver algumas pessoas de seu passado no lugar de seus interlocutores no presente. Quando se dá conta dos dramas de seus vizinhos de pensão, como um triângulo amoroso entre uma moradora fogosa, seu marido e um outro morador, esses dramas parecem ecoar lances de sua própria vida, que é apresentada de forma desconexa e fragmentada: um grande número de irmãos, um pai que encarna a figura de um patriarca gaúcho dos velhos tempos, dois filhos, uma esposa linda que o abandonou por outro homem.
O gatilho da narrativa
É no terceiro dia que Camilo decide assistir a uma sessão de cinema no Cine Castelo, perto da pensão. O filme é uma produção francesa menor que realmente estava em cartaz na Porto Alegre de 1964: Cleópatra, a Rainha de César, estrelada pelo símbolo sexual do período Pascale Petit. A questão é que, ao sentar para ver o filme, Camilo passa a ver não a história de Cleópatra, mas a sua própria vida projetada na tela. Assim, embora se passe rigorosamente ao longo de apenas cinco dias, o romance usa esse truque para recuperar toda a história de Camilo e de seu passado, retratando aí episódios cruciais como a Gripe de 18, os ecos das duas guerras mundiais, a ditadura do Estado Novo.
É por meio da sessão fantástica de cinema que a narrativa ordena as informações que vinham sendo até então jogadas de modo errático e vemos Camilo como criança entre oito irmãos, quase todos mais velhos, como jovem herdeiro de extensas propriedades rurais em desajuste com o temperamento de seu pai. Ou adulto, como o herdeiro que tenta modernizar o patrimônio que herdou, sem sucesso, abalado pelas tragédias de sua vida pessoal. Uma vida na qual não faltam os impulsos sexuais e passionais que ele, envelhecido no presente, acompanha à distância e vê espelhados nos seus vizinhos na pensão em que mora, decaído, com os reduzidos recursos que lhe restam.
É um romance que ambienta, no Rio Grande do Sul, o retrato do declínio da sociedade eminentemente rural e do mandonismo agrário do país, a exemplo de outros livros com preocupações semelhantes, mas situados em outros cenários, como Fogo morto, de José Lins do Rego, ou Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso. Aliás, é o mesmo tema ao qual Erico Veríssimo vai dedicar também boa parte de sua obra.
O estilo
Josué Guimarães, como escritor, tinha uma visão eminentemente narrativa. Não era do time dos inovadores que pretendiam fazer da linguagem um signo em si próprio e experimentar recursos da prosa até o limite. Pelo contrário, numa herança de seu ofício de jornalista e homem de imprensa, era um narrador claro, de uma prosa escrita para ser lida sem atropelos, como que fazendo o leitor mergulhar na narrativa até se perder (o que é uma técnica diferente, mas que não exige tão menos trabalho assim do que a pirotecnia da linguagem).
Ao mesmo tempo, em consonância com o realismo mágico latino-americano que era uma tendência forte no período, quase todos os seus livros, mesmo os de corte mais realista, apresentam um elemento fora de lugar que oscila entre o onírico e o fantástico. No caso de Camilo, o elemento fantástico parece uma cristalização de um estado mental em que o personagem já estava, o de se perder no “cinema de sua vida” dentro de sua própria cabeça. O fato de que esse filme é projetado na tela e apenas ele, diante da sala cheia, parece estar vendo o que vê tem um efeito desconcertante para o personagem porque o filme contraria muito do que Camilo havia cristalizado na sua versão da memória ao longo dos anos, como se o filme estivesse forçando o personagem a fazer um acerto de contas consigo mesmo.
Camilo Mortágua é também uma história que sabe avançar para além de seu protagonista-título, tanto na ambientação quanto na criação de coadjuvantes pitorescos e interessantes. A figura do pai de Camilo, ou de seu irmão Aníbal, ou seus companheiros no presente, como o português dono do bar Viseu, onde Camilo costuma almoçar, ou seus colegas de pensão. Também é primoroso o retrato nítido que Josué Guimarães faz de uma breve fatia de tempo em Porto Alegre. Versátil, seu retrato se espraia desde os casarões da Avenida Independência, resquícios reais da fortuna decadente da aristocracia rural do Estado, como os elementos mais populares e até degradados de uma Porto Alegre em constante expansão urbana. O Cine Castelo em que se passa boa parte da história foi um cinema real de alto padrão que, após seu declínio e falência, tornou-se um bailão popular e, mais tarde, foi demolido para dar lugar a uma anódina agência de banco (nada surpreendente em uma Porto Alegre que parece odiar sua própria história, conforme comprovado, entre outras coisas, pelo resultado das últimas eleições).
O agora
Claro, há um elemento desconcertante que não é mérito exclusivo do talento de Josué Guimarães – um dos meus autores de predileção, mas que, aparentemente, é hoje cada vez menos falado, não sei explicar por quê. Reler um romance sobre a tensão de um golpe militar ocorrido de fato à sombra das recentes notícias de mais um golpe militar planejado, para manter no poder o oligofrênico-mor da nação que nos afundou no pântano da corrosão política e institucional, tem algo de fantasmagórico e até mesmo assustador – mostrando que a política brasileira é mesmo o terreno das reprises e refilmagens.
Pois às vezes uma vida realmente dá um filme. O que, no entanto, não é garantia nem de sucesso de bilheteria nem de final feliz.
Todos os textos de Carlos André Moreira estão AQUI. Foto da Capa: Reprodução das Redes Sociais