“Venha morar onde os outros passam as férias”, dizia o outdoor às margens da rodovia. E foi essa a expectativa que todos tentaram criar em mim, quando anunciei a mudança para Santa Catarina: que eu estava a dois passos do paraíso.
Há quase dois meses, me mudei com a família de São Paulo, capital, para Florianópolis. Quando falo daqui, as pessoas automaticamente me imaginam bebendo um drink colorido numa areia branca, admirando o mar azul turquesa. Bom, a realidade é um pouquinho mais P&B.
Moramos no Sul da ilha, perto do aeroporto. Mais precisamente numa rua estreitíssima, sem saída e de mão dupla. Nosso lar é relativamente grande e confortável. Ambientes amplos, boa luz natural, arejado. Piso de porcelanato; muitos armários; pias altas e escuras. Uma sala de estar com paredes de vidro encoberto por uma película azul, deixando todo o ambiente desta cor.
Nunca havia morado em casa. Muito legal, mas o trabalho é infinito. Por mais que se varra todo dia, sempre tem no chão uma espécie de “lâmina” de areia misturada a pelo de gato e cadáveres de insetos. O pátio, sem grama, tem uma pequena piscina (e a preocupação constante de mantê-la limpa e livre de focos do mosquito transmissor da dengue).
Moramos nós 4, nossos 2 gatos, esporádicas baratas voadoras, algumas aranhas e incontáveis mosquitos. Os vizinhos mais próximos são uma vaca (literalmente) e uma senhora com sotaque porto-alegrense, que não para de gritar com um tal de Gabriel. Se tá difícil pra mim, imagina pro pobre do Gabi.
Segundo o meu marido, o bovino que vive no campo atrás da casa é tecnicamente um boi. Mas assim que eu o vi, pensei: é a Josefa! Não sei, tem cara de vaca. Na minha progressista imaginação, não se identifica como boi. É a minha querida vizinha Zéfa, uma vaca trans.
Ela representa o maior choque cultural que senti ao chegar aqui. Veja: saí de uma megalópole com 12 milhões de habitantes, mar de prédios, agitação, trânsito congestionado, efervescência cultural, poluição em todos os níveis… para um ambiente rural. Uma praia, mas com vista para a Zéfa. Aliás, a vaca é minha única amiga até agora. Acordo, olho pela janela e dou bom dia, ao que ela prontamente responde: “Muuuu”, enquanto mastiga o seu verdíssimo café da manhã.
Algumas coisas são mais difíceis de se acostumar. O povo parece meio desconfiado, imune ao meu sorriso-quebra-gelo. Não há semáforos na região; quase tudo fecha ao meio-dia e reabre lá pelas 2h da tarde; é difícil conseguir que alguém te atenda ao telefone.
O clima é quente e úmido, péssimo para meu cabelo e humor, mas ótimo para minha dieta, já que tomo muita água e passo o dia inteiro suando. Cara e jeito de louca, mas emagrecendo. Um pouco também porque sou eu quem faço a comida, né.
Claro que também tem uma série de vantagens. O silêncio, por exemplo. Aqui o barulho de obras, ônibus, caminhões, sirenes e buzinas da metrópole, se limita ao cantar de galos ao amanhecer e aos palavrões dirigidos ao Gabriel no fim da tarde. Além da música bizarra vinda da mesma casa. Gente, o coitado do Gabi não tem paz, mesmo!
Podemos ir a pé para a escola (é uma pernada, mas dá); é seguro e tem visivelmente menos poluição. Consigo ver o céu sem obstáculos, sentir a maresia e invejar a despreocupação dos vira-latas, que cruzam a estrada como se passeassem por um campo de girassóis.
E o cenário… deslumbrante! Morros muitos verdes, banhados por um mar com água transparente, quase sempre morna, e aquele som hipnotizante das fortes ondas batendo nas pedras. Com a mesma força que arrebenta na margem, a maré repuxa de volta o que levou para a beira (e algum banhista desavisado).
Meus filhos parecem mais saudáveis. Andam de bike até a praia, têm mais fome, dormem melhor. Não vi ninguém estressado, muita gente fazendo exercício ao ar livre, bronzeada, de shorts e chinelo de dedo por todo o canto. E a comida… céus, é maravilhosa! Moro perto do circuito gastronômico. Lá tem um restaurante tipo buffet a quilo com o melhor custo-benefício do planeta!
Pensando bem, apesar da minha aura ainda muito urbano-burguesa-branca-cis-privilegiada, preciso admitir: talvez a praia seja mesmo um paraíso. Para os atletas, amantes da boa mesa, do sossego; os poetas, bovinos, aposentados e crianças… pra todo mundo! Menos para o coitado do Gabriel.
Miranda Both é jornalista e escritora. Atuou como redatora, editora, produtora, radialista, coordenadora e chefe de reportagem em Porto Alegre e São Paulo. Estreou na literatura em 2022, com o lançamento do livro “Sorrindo na chuva – uma ode à alegria crônica”, com edições em português e espanhol.
<< Gostou do texto? Avalie e comente aqui embaixo >>