O projeto de recuperação do cais tem sido uma constante nos jornais e sites de notícias desde que o governador Eduardo Leite, em maio de 2019, rescindiu o contrato com o Consórcio Cais Mauá do Brasil S.A. Logo depois, Leite propôs um novo modelo de intervenção, no qual parte do terreno será vendido.
Frente a este novo formato, coletivos e movimentos organizaram conversas, especialmente no formato virtual, sobre o que as pessoas esperavam daquele lugar icônico. Alguns desses encontros foram promovidos pelo spin POA Inquieta Arquitetura e Urbanismo, os quais se destacam “Qual Porto temos? x Qual Porto queremos?”, no dia 04 de agosto 2021, o “Inquietalks Cais do Porto: passado, presente e futuro” em 04 de setembro de 2021 e uma nova rodada de conversa em 15 de dezembro de 2021.
Passada a apresentação do Masterplan pelo governo e o novo consórcio chamado de Revitaliza, e uma proposta de ocupação dos armazéns elaborada pela sociedade civil e universidade, mais recentemente, foi publicado, em jornal de grande circulação, um artigo assinado por representantes do Executivo e Legislativo sobre o cais, que me parece ser um bom ponto de partida para se falar sobre mitos e verdades que cercam este tema. Vamos lá:
- O texto inicia com a seguinte afirmação: “O Cais Mauá já está privatizado: para as baratas, ratos, traças e cupins! Só eles detêm o uso exclusivo do local. O Cais Mauá é inacessível às pessoas há muito tempo”. O primeiro mito decorre da ideia que está por trás desta afirmação, qual seja, que o cais precisa ser concedido à iniciativa privada, pois como prédio público, está abandonado e fechado para a população.
Verdade: quando o cais do porto já não tinha mais a função portuária, o local abrigava várias atividades, algumas bem conhecidas de todos, como a Feira do Livro e as Bienais do Mercosul. Talvez um pouco menos lembradas, estão peças do Porto Alegre Em Cena, oficinas do Fórum Social Mundial, uma das edições da Casa Cor, cenário de filmes como “O Homem que Copiava”, “Meu Tio Matou Um Cara” e “A Matadeira”, todos de Jorge Furtado, feiras como o Mix Bazar e a entrada de pessoas pelo simples prazer de ver o Guaíba. O cais foi fechado à população exatamente a partir do momento em que o local foi concedido à iniciativa privada, com o contrato de concessão para o consórcio Cais Mauá do Brasil S.A., e assim permaneceu por mais de 10 anos.
- O texto prossegue: “Nada como a prática para derrubar a “teoria caranguejista”. […] Ora, os animais de 10 patas são um símbolo do porto-alegrense que reluta em andar para frente. […] Os opositores da reformulação da Orla do Guaíba tinham argumentos parecidos. Defendiam a preservação dos maricás, acusavam o projeto de ser ‘nebuloso’, denunciavam a suposta exclusão da população da periferia e ainda pediam um ‘debate mais democrático’”. Mito: as pessoas que pensam diferente do ponto de vista oficial são agentes do atraso, em nada contribuem para o desenvolvimento urbano e social.
Verdade: Voltemos a 1988, para analisar resultados da ação daqueles que são chamados pejorativamente de caranguejos. O então prefeito Alceu Collares propôs o projeto Praia do Guaíba, que consistia em urbanizar com estacionamentos, edifícios comerciais e residenciais e um shopping center, entre prédios, a orla entre a Usina do Gasômetro e o Parque Marinha do Brasil. Graças à intervenção dos “caranguejos”, especialmente da AGAPAN, hoje a orla tem ocupação democrática, como a orla inteira deveria ter – e não tem -, e é um ponto turístico, o qual os políticos de agora se vangloriam, como pode se observar no texto.
- Seguindo: “O maior patrimônio histórico-cultural de Porto Alegre está apartado dos seres humanos graças a posições teoricamente progressistas, mas que são, de fato, reacionárias e ultrapassadas”. Mito: posições progressistas são as desenvolvimentistas, entendendo-se essas como flexibilização completa para a construção civil e mercantilização urbana, e qualquer pensamento dissonante é retrógado.
Verdade: O que se entende hoje como desenvolvimento compreende o planejamento de cidades mais sustentáveis, com especial atenção ao meio ambiente, objetivando a qualidade de vida de seus habitantes. As posições entendidas pelo Poder Público como reacionárias e ultrapassadas são as que questionam os projetos, do ponto de vista da redução do fluxo de automóveis nos centros da cidade (como hoje acontece em Londres, Amsterdã, Madrid), do aumento das áreas verdes nas cidades (Munique, Londres, Kassel, algumas contando com mais de 50% da área total da cidade), da valorização da identidade local (Istambul é um exemplo), do desenvolvimento residencial limitado da orla (Budapeste), entre outros paradigmas de cidades europeias frequentemente citadas pelo Poder Público.
- Sobre o atual processo de desestatização, também conhecido como privatização do cais: “Não faltou debate sobre o projeto. Tivemos nove workshops e dezenas de reuniões técnicas com conselhos municipais e estaduais, Ministério Público, Tribunal de Contas, universidades, representantes dos setores comerciais, hoteleiro, clubes e operadores náuticos. Ainda foram feitas duas audiências públicas em abril e junho deste ano, com ampla participação da sociedade civil organizada, vereadores, deputados etc.”. Mito: o projeto é resultado da participação social na proposta do Governo do Estado para o cais.
Verdade: a participação social nunca foi tão obstada como na atual conjuntura, como pode ser observado no funcionamento (?) do Orçamento Participativo (OP), na desestruturação dos conselhos (municipais e estaduais) e na ineficácia das audiências públicas. Os workshops não foram além da apresentação do projeto já estruturado pelo Consórcio Revitaliza. Muito se tentou o diálogo, mas o retorno sobre as reivindicações elaboradas nos workshops foi pífio. O acompanhamento do Ministério Público de Contas foi uma solicitação dos movimentos sociais, no sentido de que o diálogo entre Estado e população ocorresse, já que os pedidos de audiência com o Governador e com o Prefeito jamais foram respondidos. A primeira audiência pública foi palco de reclamações sobre a impossibilidade da interlocução entre as partes e, em decorrência, foi marcada a segunda audiência. Com o Coletivo Cais Cultural Já, em conjunto com alguns professores da UFRGS, tentou-se levar sugestões para a ocupação cultural dos armazéns do cais, mas, há poucos dias, foi noticiado que o edital, o qual o coletivo e a UFRGS estavam trabalhando junto ao Poder Público, foi finalizado e está pronto para ser lançado, sem que se saiba se o que foi acordado foi realmente contemplado.
- Bem importante foi a declaração de que “O maior desafio é viabilizar um projeto sustentável financeiramente. Só a iniciativa privada pode alavancar um investimento gigante de mais de R$ 1 bilhão”, concretizando o mito de que o cais só pode ser revitalizado se a iniciativa privada arcar com os custos, pois o Estado não tem recursos para bancar a recuperação.
Verdade: A escolha da desestatização é uma escolha política. O governo do Estado fez esta opção, pois entende que através dela, Porto Alegre ficará mais atrativa para receber investimentos internacionais, sendo necessário seguir a cartilha de Barcelona. Nesse contexto, 1,6 bilhão de reais foi direcionado para um programa de logística e transporte, incluindo a recuperação de estradas federais aqui no estado. O maior percentual de investimento é para as docas, com a previsão de construção de nove edifícios, que servirão, em sua maioria, de residência para uma parcela privilegiada da sociedade. Mais do que isso, a restauração dos bens tombados, possibilitando seu uso, representa uma fração pequena do orçamento; na proposta anterior, foi estimada em menos de 10% do valor total do projeto, e existem estudos indicando a viabilidade de uma gestão sustentável e compartilhada, entre o Poder Público, a iniciativa privada e a sociedade civil. Não há falta de recursos, mas falta de vontade política para manter o cais do porto completamente público, de acesso universal e democrático.
- Seguem os autores: “É uma falácia dizer que o novo Cais Mauá será exclusivo a quem tem dinheiro. Qualquer pessoa poderá frequentar o local, levando seu chimarrão e cachorro, sem pagar nada. Lá, encontrará um ‘boulevard’ arborizado, com ciclovia, área de convivência e contemplação para o rio e uma série de espaços culturais, gastronômicos, turísticos, inovadores, tecnológicos, de lazer, entre outros”. Mito: o cais continuará a ser público e de acesso irrestrito, depois que for desestatizado.
Verdade: Sobre o percentual de 70% dos edifícios destinados a residências, as quais apenas uma pequena parcela poderá pagar, já foi assinalado. Inclusive, uma conselheira do Conselho Municipal de Acesso à Terra e Habitação (COMATHAB) foi bem clara em dizer, numa audiência pública, que ali “não é lugar de habitação social e que se deve colocar cada coisa em seu devido lugar”. Vejamos o que acontecerá com os bens tombados: armazéns e prédio do DEPREC. Existe uma avaliação jurídica que estuda a possibilidade de venda desses bens, feita pelo atual consórcio. Mesmo que não sejam vendidos, eles serão concedidos à iniciativa privada, que decidirá como e com o que se dará a ocupação dos bens. Uma das previsões é transformar o edifício num “coliving, shortstay e AirBnb”. Sobre os demais armazéns, com exceção do A e do B, podem seguir o mesmo destino que o Embarcadero, especialmente se depender da vontade do poder público:
“O Cais Embarcadero é um exemplo daquilo que precisa acontecer. Não é aceitável que estejamos arrastando este tema por mais de 20 anos. A cidade deve encontrar o caminho da revitalização do cais e não há dinheiro público suficiente para implementá-la” – Prefeito Sebastião Melo.
“Sustentamos a rescisão com forte respaldo jurídico, para que pudéssemos rescindir o contrato com a antiga concessionária e ainda contratar diretamente com os empreendedores a manutenção do Cais Embarcadero, empreendimento que já estava em tratativas e que tem a cara que queremos para o nosso Estado, voltado à nova economia, acolhedor e um local onde as pessoas queiram estar e se encontrar” – Governador Eduardo Leite.
Verdade 2: O Embarcadero é resultado do contrato firmado com o consórcio Cais Mauá do Brasil S.A., que foi referendado pelo atual governo estadual. Assim, como aconteceu com o consórcio anterior, o contrato entre Estado e Privado foi descumprido, pois previa ali, no armazém A7 e imediações, apenas e tão somente, “a instalação e funcionamento de empreendimento temporário, voltado ao entretenimento, gastronomia e espaços para a prática desportivas”. Contudo, já foram instaladas lojas de vestuário e de acessórios, afrontando a determinação contratual. Além disso, antes de se atravessar os muros que cercam o complexo do empreendimento, há uma placa de avisos determinando o comportamento dentro daquela área, abrangendo a proibição de qualquer consumo que não for adquirido ali. E o aviso conclui dizendo: “O Cais Embarcadero é um espaço privado criado para uso público, e pode, ocasionalmente, fechar para manutenção ou eventos privados”.
Ainda muito mais poderia ser dito sobre as duas últimas tentativas de recuperação do cais: percalços, embates, brigas judiciais, investigação criminal, estratégias de diálogo, personagens, análise dos ganhos e perdas para a cidade. Talvez, o erro recorrente e que resultou na incapacidade de retomada daquele local emblemático tenha sido tratá-lo como “um plano de negócios”, e não olhar o Cais do Porto a partir da perspectiva histórica e identitária de Porto Alegre, respeitando todo o simbolismo do local e sua relação harmônica e sustentável com a cidade.
*Jacqueline Custódio é advogada, integrante da AMACAIS – Associação dos Amigos do Cais do Porto, Coletivo Cais Cultural Já e do spin Arquitetura e Urbanismo (POA Inquieta).