Dependendo do horário e do dia, ter que sair de um bairro a outro em qualquer grande cidade do planeta pode ser uma ação complexa e atribulada. Assim, afligido por um turbilhão de quefazeres, me deparei com a situação de não conseguir atravessar a circunvizinhança a tempo de cumprir a empreitada que me requisitava.
Transporte público não havia, carro não percorreria eficazmente. Por conseguinte, a solução viável para cursar o trajeto imprescindível era uma moto. Não tenho e não sei pilotá-la: o recurso foi acionar o serviço do motociclo por aplicativo.
A estranha decisão foi veementemente desencorajada, desestimulada e desacreditada por uma amiga de trabalho que dividia comigo as responsabilidades envolvidas.
Todavia, movido pelo dever (justificativa que não se sustenta depois de uma sessão de psicanálise ou consulta psiquiátrica), acavalei a máquina de dois cilindros e duas rodas.
Chegando, o condutor vinha numa expressão não enervada, contudo, não por semblante de relaxamento, mas por algum modo de lividez: de imediato afluíram a mim as emoções fortes impingidas por seu ofício.
Inicialmente, ele me passa a única proteção que o complexo biológico que constitui meu corpo terá nos próximos minutos: o capacete. Olfatos mais apurados têm nesse momento um primeiro obstáculo a transpor.
Visto o elmo com dificuldade: seu tamanho standard é inferior à dimensão da minha cabeça dura. Já montado, tendo como estribo pedaleiras um pouco mais largas que as pontas dos meus pés, o veículo inicia as ações conjuntas de equilíbrio e movimento enquanto eu ainda tentava ajustar o melhor modo de segurar o volume de objetos que tinha em mãos com a maneira menos insegura de me agarrar à garupa: ensaios incessantes em toda a jornada.
Engarrafamento constituído, é no espaço formado entre um automóvel e outro, com seus respectivos retrovisores projetados em nossa direção, que a Honda se lança em velocidade considerável para tão pouco espaço lateral: na mesma lógica de um pião, o piloto parecia acreditar que, quanto mais rápido rodasse, melhor seria a estabilidade da dupla de pneus. Mais à frente, estamos ladeados por paredes de ônibus e carrocerias de caminhões. E, é entre muralhas de chapas arrebitadas e cabeças de parafusos brotadas de coloridas ripas que a fragilidade daquele veículo se potencializa.
A vida passou diante dos meus olhos naqueles 10 minutos de Uber moto…
Porém, em termos de eficiência, a escolha foi acertada: não teria satisfeito a necessidade, não teria cumprido o encargo, não teria realizado a incumbência.
O naturalizado vendaval de tarefas intimadas por plataformas digitais, reuniões pelo Meet, demandas por WhatsApp (formulários, planilhas e documentos que chegam aos montes) e tantos outros modos velozes de requisição ao labor, nos coloca diante do imperativo de equilibrarmos, na jornada cotidiana, a vida e a produtividade.
Todavia, o homem do aplicativo de moto sabe, mais do que muita gente, que, nessa velocidade que lhe captura, a vida transcorre espremida. E que, quando se consegue parar, lívidos, apenas nos recuperamos para o início da próxima requisição.
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Foto da Capa: Divulgação Uber