Um dos deleites de se trabalhar com fala e linguagem é presenciar a criação de metáforas. Com sorte, podemos participar ativamente desses momentos preciosos. Nesse sentido, observo três atividades que confluem: a realização da escrita criativa, ser criança e psicanalisar. Em relação a esta última, pouco importa se na poltrona ou no divã. O momento a que me refiro dá conta da passagem por um habitáculo, uma nascente. O nascedouro de linguagem é essa espécie de umbral de criação pertencente a qualquer falante, porém marcada de forma vívida nestes exemplos.
Casais, amigues e colegas também formam códigos próprios e piadas internas, é claro. De fato, penso que parte de nossa necessidade gregária está justamente nessas partilhas criadoras. Somos artistas e público uns dos outros, quer dizer, criamos e alguém próximo nos endossa, valida e, às vezes, difunde. É também no equívoco comunicacional, entre eles o translinguístico, que surgem as preciosidades.
Outro dia, minha enteada, que aos 7 anos está tendo seus primeiros contatos com o idioma português, me deixou com a orelha bastante atenta e sensível. Papá, !se me cayó la tapa!, disse. Ela estava falando com o pai dela sobre a tampinha de uma canetinha que caíra no carro; nada demais. O tom, a ênfase e a dramaticidade, no entanto, davam ares de coisa de muito mais grave. Por fim, terminamos rindo muito com a falsa metáfora que estalou em meu ouvido. Especialmente, rimos da minha decepção pelo dito não ser algo usual e, ao mesmo tempo, rimos da amplitude que a frase poderia tomar, das coisas mais escatológicas às mais cotidianas, como um esquecimento de uma informação importante ou pagar uma conta. Che, ahora se te cayó la tapa! Em tradução gaudéria poderia ser: Tchê, agora tu perdeu a tampa! – alusão grosseira à consciência repentina de incompletude. Na verdade, não vejo melhor razão para o cultivo sadio da metáfora: lembrar que por sermos incompletos há mil maneiras de se expressar.
Não é de hoje que, por diferentes razões, trabalho em espanhol. No entanto, nada se compara com viver o cotidiano íntimo em outro idioma; um abismo em relação ao uso da formalidade do idioma para trabalhar. Ainda assim, é em meu idioma nativo que coleciono pérolas do trabalho e depois as carrego comigo. É certo que muitas beiram o nonsense, ainda que efetivas em alguma situação de tratamento.
Certa vez me surpreendi dizendo a um paciente que ele estava cortando gelatina com uma espada katana. Ele estava fazendo um esforço descomunal para algo que a competência lhe sobrava, algo assim como fichar um texto que já havia lido 5 ou 6 vezes. Ou seja, ele já estava super afiado. Não se tratava nem de polimento, nem revisão, mas fazia isso porque senão o mérito não lhe bastava para a graça alcançada. Enfim, caminhos da neurose…
Agora bem, as metáforas não são eternas. A linguagem é viva e vai se recompondo com novas cores e formas. De qualquer forma, uma coisa é a linguagem morrer de morte natural, outra coisa é ser assassinada, ou pior, dizimada. Em nosso tempo – tão assimétrico em relação à capacidade cognitiva e à quantidade e qualidade de informação – observo com tristeza esses assassinatos à queima roupa. Por sorte, há esperança quando vejo memes tão inteligentes, mas isso não parece suficiente quando temos o câncer da pós-verdade e da ignorância, cuja habilidade linguística mor é o uso massivo de signos. Estes exigem prontidão acéfala e grupal. Em todo o caso, a gente vai levando. Enfim, é cada coisa que o mais comum é que caiam mesmo os butiás do bolso.