Num dia chuvoso, no alto de uma torre, num condomínio qualquer da avenida Ipiranga, da janela da cobertura, um senhor de uns oitenta e tantos anos avista uns moleques brincando no “esgoto”. Ele corre na gaveta do escritório para buscar seus óculos, para ter certeza do que está vendo. Passou a vida lendo letras miúdas em contratos milionários que fechou na sua longa trajetória de sucesso. Já enxergando melhor, olha novamente pela janela e não consegue mais ver o “esgoto”.
A felicidade daqueles meninos era tão grande que o arroio Dilúvio se tornou um oceano. A cena fez com que algumas gotas escorressem dos olhos daquele senhor. Em sua mente, ele começa a voltar no tempo. Lembra-se que já sentiu aquela felicidade, quando era criança. Também tivera uma infância humilde, pescava à beira de uma sanga com seus irmãos e amigos. Em dias quentes quase não levavam peixes pra casa, mas levavam a alegria de um dia bem vivido. Foi buscando essa alegria que se tornou bem-sucedido. Acreditou que poderia comprar as coisas que o fariam sentir aquela felicidade. Fez muitas viagens pelo mundo, conheceu as mais belas praias. Comprou inúmeros carros. Deu festas e tudo mais que o dinheiro pôde comprar.
Mas naquele instante, ele sentiu que teve uma vida feliz. Mas nunca teve a mesma felicidade que o ambiente daquela água barrenta lhe proporcionou. Entendeu naquele momento que não eram as coisas que mudavam o mundo, mas sim como olhava o mundo que mudava as coisas.
De volta à janela, no alto de uma torre, num condomínio qualquer na avenida Ipiranga, aqueles moleques brincando no esgoto, fizeram aquele senhor bem-sucedido chorar. Com lágrimas de felicidade nos olhos cansados, voltar a ser menino pela última vez.
Inventei essa história-clichê pra nos lembrar que não precisa ser sempre, mas, às vezes, temos que olhar o mundo como as crianças olham. Dar valor ao que tem valor. E não ao que tem preço. De ser feliz hoje e não amanhã. Pois na simplicidade do olhar de uma criança, como dizia aquela música do Toquinho, com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo. Uma caixa de sapatos e quatro tampinhas de garrafa viram um ônibus. Um pedaço de arame e uma roda velha viram felicidade. E um “esgoto” pode virar um oceano. E até mesmo um homem velho pode virar um menino.
Por mais cuidado com a água
No verão passado, tivemos falta de abastecimento de água no complexo Morro da Cruz, em Porto Alegre, por 20 dias. Por causa dos protestos, o problema foi notícia nos jornais e emissoras de TV. Estamos em pleno verão e a comunidade está aflita com a possibilidade de falta d’agua, pois quase nada foi feito por melhorias pela Prefeitura de Porto Alegre/DMAE. Novamente este ano, alguns dias faltaram água.
Conheci o POA Inquieta no I Congresso de Educação Popular para Cidadania no ano passado. Venho ocupar este espaço para aproximar um pouco o trabalho que estamos fazendo no Morro da Cruz, onde moram 95 mil pessoas.
Sabemos muito bem a importância de abrir as torneiras e delas jorrarem água para o dia a dia. Mas é necessário que façamos uma autocrítica: reclamamos ao mundo pela água que não sobe o morro, mas nos calamos sobre o que acontece com a água que desce o morro. Falo sobre as abençoadas nascentes presentes em vários pontos do Morro da Cruz. São fontes de água limpa, que em seu trajeto de descida acabam contaminadas pelo lixo e pelo esgoto que nós mesmos depositamos no curso dessas águas.
Confira na página do projeto Morro da Cruz Histórias algumas fotos e vídeos para conferir a beleza natural de nossa comunidade. Beleza que é escondida pela falta de cuidado e descaso nosso e do poder público. Não podemos nos esquivar de nossas responsabilidades. Só que para que deixemos de escoar o esgoto de nossas casas no caminho das nascentes, precisamos de uma alternativa. Além de preservar a natureza, saneamento básico é questão de saúde e de qualidade de vida.
Precisamos estar atentos ao que acontece e cobrar das autoridades competentes para que não sejamos esquecidos. No dia 15 de julho de 2020, o Governo Federal sancionou o marco legal do saneamento básico, que pretende universalizar os serviços de saneamento básico no País até 2033, garantindo que 99% da população tenha acesso a abastecimento de água e 90%, a coleta e tratamento de esgoto. Queremos saber da Prefeitura e dos vereadores qual o plano para nossa comunidade em relação a abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto e recuperação das nascentes. Estamos aqui para colaborar.
Queremos mostrar à sociedade que a comunidade do Morro da Cruz se importa tanto com a água que sobe, como com a água que desce. As nascentes estão desaparecendo não pela falta de chuvas, mas sim pelas ações de destruição dessas fontes de água. Queremos que mais gente se torne criança e volte a brincar na água. Só que limpa, bem cuidada. Tanto em cima do Morro como ao longo da avenida Ipiranga.
*Clóvis Marques – Cansado de ver histórias da sua comunidade estampadas nas páginas policiais, iniciou um trabalho de Historiador Periférico. Criou o podcast Papo de Quebrada e a página no Facebook morrodacruzhistorias. Integra o grupo de Economia Criativa do POA Inquieta.