Minha vó fez 89 anos esses dias, mas já morreu há um bom tempo. Morrer em vida. Uma grande contradição, ainda mais para uma pessoa que se diz católica fervorosa, já que a vida é um presente de deus. Como aquela pessoa que recebe sempre meias de presente e depois de 89 anos enche o saco e não quer mais o mesmo. Vejo as fotos da família, todos felizes posando, menos a aniversariante. Ninguém percebeu seu rosto triste? Ou não quiseram vê-lo?
Famílias que não falam de seus problemas, está cheio por aí. Se sua família fala abertamente e francamente dos seus problemas, você é uma pessoa afortunada! A maioria dos mortais tem que falar “mal” da sua família com os amigos, com os parceiros, marido, esposa. Os que podem, na terapia (aí vem o amigo Freud e complica ainda mais tudo).
No meu caso particular tenho um pai que foi um filho abandonado e uma mãe que não teve mãe, no caso a mesma senhora que está fazendo 89 anos. Não é que ela tenha morrido (ainda que agora sim está “meio morta”, se é que se pode dizer isso), mas minha vó foi uma mãe ausente. Acho bem típico dos anos 80, afinal foram anos bem badalados, com lambada, sertanejo do bom, reabertura política, hiperinflação, muito cigarro, pornochanchada etc., etc…
Mas voltando aos dias atuais, vejo de novo a foto de minha vó morta em vida e ela tem esse olhar ido, de quem já não está aqui por essas terras. Pelo o que eu sei (eu moro fora do Brasil, por isso não tenho contato com ela), é que ela está super lucida, fala, responde. A única coisa que se nega a fazer é andar. Dizem que quando algo está quieto, está morto e isso só confirma minha teoria.
Indo ao outro extremo de movimento, hoje as pessoas relacionam, viagens com felicidade, com descobertas, com aproveitar o agora, com estar vivo. Vejo uma questão de movimento que se relaciona com o conceito de vida que dizia antes. Jorge Drexler explica muito bem na música Movimiento, trilha sonora clichê para as fotos de Instagram dos viajantes (principalmente os que se aventuram por terras latino-americanas).
Com a globalização, parcelamentos de cartões de crédito, WhatsApp, trabalhos remotos, tudo empurra a gente a viajar, viajar, viajar. Cada vez mais se perde o que antes foi o estereótipo e a cultura dita típica de um país, idiomas se misturam e aparecem o portunhol, espanglish (e vários outros), nascem os filhos de casais com diferentes nacionalidades que vivem em outro país que não é nem a terra da mãe, nem do pai.
O problema desse novo cenário é que a gente termina não criando raízes, rechaçando (às vezes muito, às vezes pouco) o solo que pisamos, perdendo de certa forma nossa identidade, tendo que fazer um trabalho danado para entender quem realmente somos, o que queremos… No final das contas nosso instinto mais ancestral nos diz que temos que ser aceitos pela manada, mas a manada é tão diferente de mim, e aí o que fazemos?
Para terminar, cito outra banda – Jarabe de Palo dizia (tradução livre minha): “No puro não há futuro, a pureza, está na mistura”, contradizendo um pouco o que disse antes, já que o humano é uma eterna contradição, é morto e vivo ao mesmo tempo.
*Carolina Murgi. Sou contadora, no trabalho conto números dos outros, aqui conto minhas histórias.