Acaba de ser aberta, aqui em Recife, sob o patrocínio e curadoria da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, uma exposição sobre o Movimento de Cultura Popular (MCP), que existiu entre os anos de 1960 e 1964, pela iniciativa de pessoas como Miguel Arraes (então Prefeito), Germano Coelho, Abelardo da Hora, Luiz Mendonça, Geraldo Menucci, Silke Weber, Anita Paes Barreto e muitos outros: um amplo movimento cultural (posteriormente estendido para o interior do Estado) que envolveu intelectuais, estudantes, artistas populares, professores…, e que ainda hoje, sobretudo na memória de quem viveu aqueles dias, um sentimento de que ali se estava fazendo algo de historicamente importante: um misto de afirmação identitária, de descoberta e valorização da “cultura popular” e de criação de um laço político-cultural importante entre intelectuais e povo.
O Movimento foi amplamente estudado e discutido sob a forma de teses, ensaios, entrevistas, artigos e livros. No geral, penso não estar longe da verdade ao afirmar que boa parte dos autores incide sobre um ponto comum a respeito do MCP: mesmo no interior de uma quadratura populista, estava a caminho um processo de emergência do “povo como categoria histórica”, como ator e sujeito de um projeto político e cultural que culminaria numa “crise de hegemonia” de onde se poderia vislumbrar a Canaã da “revolução brasileira”, que tinha em Pernambuco seu mais avançado laboratório. Todas estas teses, de fato, estão profundamente sedimentadas em nossa interpretação daquele período.
Há, assim, um sentimento bastante positivo por parte de seus estudiosos e ex-participantes: gerou-se uma atmosfera política e cultural na cidade (Recife) que apontava para uma espécie de redenção social. A cultura popular – cuja “descoberta” fora iniciada nos anos 20, começava a ser valorizada por uma elite intelectual tradicionalmente formada e conformada a um consumo restrito de bens culturais importados e de circulação bastante exclusiva – passa a ser vista como sinônimo, não mais de folclore ou de persistência no meio popular de valores arcaicos e rurais, ou como manifestação pitoresca e exótica em um país ainda fortemente marcado por relações de mando, de base clientelista e patrimonial, mas como uma forma autêntica de resposta cultural aos nossos problemas de identidade. Aqueles que participaram do Movimento guardam, acima de tudo, um nostálgico sentimento de que, depois dele, não se fez mais nada de tão importante e “mobilizador” , e o que se fez foi consequência de seu legado. Arriscaria afirmar que alguns daqueles artistas ou militantes que ali se engajaram vivem e sobrevivem às custas desta lembrança, como se ali estivesse preservado e, sobretudo, resumido o sentido de suas vidas. Seus depoimentos e testemunhos são, de ordinário, manifestos de saudade de um “tempo de compromisso”, de uma “vontade de mudança” e de “responsabilidade política”, depois perdido para sempre. Paira, assim, sobre o MCP um manto de unicidade só comparável à obra de arte “aurática” benjaminiana!
Vinha, no entanto, dos anos 20 e do clima espiritual provocado pela “redescoberta do Brasil”, o debate em torno de uma identidade nacional produzida a partir “de baixo” (e não preciso lembrar, aqui, a importância de Mário de Andrade no impulso original que deu e este debate), clima que ganhou sua expressão “mitológica” mais forte na obra de Gilberto Freyre e no valor antropológico que ele atribuiu às tradições enraizadas na sociedade patriarcal, defendendo um “Modernismo a seu modo” que procurará conciliar tradição e progresso, herança cultural patrimonialista e modernização de nossas instituições: era nossa brasilidade que estava em questão. No entanto, a descoberta de uma cultura do “povo” rica e plural, de onde se espera a base cultural e identitária da Nação, coisa que nossas elites (sempre frustradas em seu desejo de parecerem europeias e recusando com desprezo as formas culturais vinda das tradições populares) jamais aceitariam, esbarra no espetáculo de um povo ignorante de seu destino e incapaz de assumir o proscênio da história, como “povo-sujeito”, “autêntico”, “crítico” e “consciente”. Estávamos diante de uma verdadeira ambiguidade cultural e política, sempre traduzida em termos de uma “dialética”, com suas exigências de sínteses “superadoras”: povo dotado de uma cultura imaterial de funda raiz, mas incapaz de tomar as rédeas de seu destino e realizar sua “missão histórica”.
O que entendemos por Educação Popular, e com a qual o MCP ficou fortemente identificado, é a tentativa pedagógica de solucionar o dilema (criado pelos próprios intelectuais, diga-se!) entre cultura rica e consciência pobre, entre autenticidade cultural (seja lá o que isto queira dizer!) e inautenticidade da consciência dominada e hospedando invisíveis opressores.
Podemos dizer que os anos 20 colocaram sobre a mesa a questão da identidade nacional (discussão que tomava a forma do “caráter”, da ”psicologia” ou da “alma” nacional). Esta tentativa de “redescoberta” do Brasil, para a qual – como já dissemos – Mário de Andrade oferecerá a mais valiosa das contribuições, através de suas viagens etnográficas repertoriando e catalogando elementos das culturas populares regionais (“O turista aprendiz”), caminha em aberto contraste com as interpretações “autoritárias” de Alberto Torres ou Oliveira Vianna, que lançavam um verdadeiro anátema sobre a nossa demografia, contaminada pela presença negra e, portanto, incapaz de alcançar os patamares superiores da civilização (cuja “solução final”, para alguns, passava por um amplo e demorado processo de branqueamento através de uma política eugenista que Vargas, aliás, apoiou). Vozes como as de Roquete Pinto, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, no final dos anos 20 e início dos anos 30, oferecerão um contraponto decisivo e duradouro à imagem (mitológica) que faremos de nós mesmos e de nossa “identidade”. No entanto, praticamente todos estes intelectuais concordariam num ponto: o problema era o “povo”, ora desqualificado pelo pensamento conservador e autoritário (penso aqui em Nina Rodrigues, Oliveira Vianna e Alberto Torres), ora superestimado por um tipo de ideário que vê nele a matriz da construção de um projeto “genuinamente” nacional. O Bispo Sardinha finalmente seria canibalizado para, após digestão, vomitarmos brasilidade cultural…, tese oswaldiana que retornará com os Tropicalistas, nos anos 60. A cultura popular serviria, aqui, de cimento para a construção simbólica desta identidade, em oposição ao caráter universal, homogêneo, cosmopolita e abstrato da cultura “burguesa”. No “povo” residia nossa miséria e nossa redenção e, assim como ele havia sido representado ou, melhor dizendo, construído/inventado em formatação negativa (como povo-carência), também o poderia ser de outra maneira, através da valorização, pelos intelectuais, da sua cultura (como povo-potência). Isto quer dizer que a definição do que era “cultura popular” (em seu contraste com a “cultura erudita”) era (e é) uma invenção de intelectuais interessados em dar uma resposta à questão da identidade brasílica. Está a caminho um complexo projeto de invenção do “povo”.
E é aqui onde o MCP aparece como uma continuidade da discussão pedagógica e cultural dos anos 20 sobre nossa identidade nacional. Valorizar a cultura popular através do teatro, do artesanato, das artes plásticas, da música, do cinema ou da alfabetização de adultos parece ter significado exatamente isto: escolher entre os diferentes, complexos e variados aspectos da “cultura popular” aqueles que interessavam à construção de uma noção de “povo” adequada ao “projeto nacional”, e que podemos, brevemente, definir como “povo consciente” (não-alienado), “povo autêntico” (contrastando com a “massa”) e “povo-sujeito” (em oposição ao povo-objeto).
O problema é que estudiosos do MCP, seus historiadores e intérpretes, tanto no domínio da crítica ou da história cultural, quanto no da educação popular, produzem sempre a impressão de que entre esses dois momentos – os anos 20 e sua busca de resposta à questão nacional, e os anos 50 com sua ilusão “revolucionária” – não há relação verificável! Tudo se passa como se um “gênio criador” tivesse se apossado da cidade, e tido a sorte de coincidir com a “vontade política” de um governante (Miguel Arraes) e que, finalmente, intelectuais, artistas, professores, empresários, comerciantes e “homens de boa vontade” tivessem sido tomados e invadidos por uma entidade (situada entre o Espírito Absoluto hegeliano e os orixás do Candomblé, quer dizer, entre cultura erudita e expressões populares) e promovido o mais memorável movimento de renovação cultural e pedagógica de que se tem notícia entre nós, pernambucanos!
Há algo de mitológico em tudo isto. Mas, se é verdade que o valor de um mito pode ser medido pela sua força heurística ou pela sua abrangência narrativa, ou seja, é a partir dele que nos entendemos, que criamos um sentido para nossas vidas, para nossa origem, para nosso destino comum, para nosso lugar no mundo…, neste caso, penso que o MCP exerceu a contento sua função mitológica: 60 anos depois de sua existência, seus analistas, estudiosos ou ex-participantes só fazem aumentar a importância daquele momento cultural brasileiro.
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Foto da Capa: Memorial da Democracia
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