“Montevidéu te levará em seu coração”
Ana Carolina Cosse
Prefeita de Montevidéu em seu Twitter
No início da década de 1980, quando o movimento moderno encerrava sua derradeira fase dita “brutalista”, na América Latina, e o Cone Sul concluía um período de ditaduras militares ou civis-militares, alguns arquitetos tiveram a coragem de enfrentar temas relevantes para o futuro das nossas cidades. Dentre eles destacou-se um uruguaio chamado Mariano Arana, nascido em 6 de março de 1933, em Montevidéu, neto e filho de imigrantes espanhóis, que fez sua formação básica no Liceu Francês de Montevidéu e universitária na Faculdade de Arquitetura da Universidade da República, uma das melhores do continente. No período em que cursou a faculdade, foi dirigente do Centro de Estudantes de Arquitetura (CEDA) e da Federação de Estudantes Universitários do Uruguai. Graduou-se em 1961, vindo a ser professor de História da Arquitetura (1969) e diretor do Instituto de História da Arquitetura (1985-1990), na mesma instituição de ensino superior. Por sua trajetória acadêmica, recebeu o título de Professor Emérito (2001). Posteriormente recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade da República (2008). Foi ainda um dos fundadores da Ediciones de la Banda Oriental e presidiu a Comissão de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural da Nação, no período entre 1985 e 1989.
Mariano Arana, que teve sua trajetória acadêmica interrompida pela ditadura cívico-militar, pouco antes de retornar à atividade docente, realizou duas palestras no auditório do Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento do Rio Grande do Sul, na época situado à Rua Professor Annes Dias, número 166, em frente à Santa Casa de Misericórdia, aqui em Porto Alegre. Nas noites de 19 e 20 de agosto de 1982, em seis horas/aula, Arana numa linguagem clara e simples, falou sobre os rumos que tomou o patrimônio arquitetônico de Montevidéu, naqueles anos de chumbo, em especial, sobre a “Ciudad Vieja”, com um brilhantismo tal, que entusiasmou o articulista que aqui escreve, na época um jovem de 25 anos, formado há pouco mais de um ano. Arana fez os presentes perceberem que os problemas lá existentes não diferiam dos daqui, e alertou para a necessidade de serem enfrentados.
Mariano era um sedutor. Entusiasmava os jovens estudantes ou arquitetos a se interessar, em especial, pelo legado deixado pelos seus antepassados. Teve uma atuação destacada no âmbito do ensino de arquitetura e do urbanismo, estimulando o estudo e a pesquisa sobre a arquitetura uruguaia e, em especial, sobre o patrimônio arquitetônico de Montevidéu.
Sua atuação não ficou restrita à academia, é também reconhecida a sua militância política. Político reto, de austeridade republicana, de 1990 a 1994, foi senador da República, cargo que voltaria a exercer de 2008 a 2015. Foi intendente, isto é, prefeito de Montevidéu, de 1994 a 2005 e ministro da Habitação, Ordenamento Territorial e Meio Ambiente, do governo do presidente Tabaré Vázquez (2005-2008), período em que a coalizão de esquerda, chamada de Frente Ampla, governou o país vizinho (2005-2020). De 2015 até sua morte, no domingo, 4 de junho passado, foi vereador na Junta Departamental de Montevidéu. Neste âmbito, contribuiu para melhorar sua cidade e seu país. O reconhecimento veio na noite de 23 de novembro de 2022, quando recebeu o título de Cidadão Ilustre da capital uruguaia, da Intendência (Prefeitura) e da Junta Departamental (Câmara de Vereadores), com o Teatro Solis lotado. Também recebeu distinções na esfera internacional: em 1996, foi contemplado com a Ordem Nacional ao Mérito, da República Francesa; em 1997, recebeu a Ordem do Cruzeiro do Sul do Governo da República Federativa do Brasil, e, neste mesmo ano, foi-lhe outorgada a Cruz de Mayo pelo Governo da República Argentina.
Este articulista conheceu Montevidéu no início de 1984. A Cidade Velha de Montevidéu caía aos pedaços. Era assustadora a deterioração do seu patrimônio. Pouco mais de uma década depois, a cidade e seu casco histórico, em especial, atraía profissionais e estudantes de arquitetura para presenciar as ações de reabilitação urbana empreendidas por Arana e seus discípulos, ações estas que continuam até os dias atuais.
O arquiteto e político teve uma participação ativa no exercício da sua cidadania. Sempre que possível, estava pronto para se posicionar frente os temas mais variados que diziam respeito à cidade. Há uma passagem que foi lembrada pela imprensa uruguaia no dia da sua morte, sobre um episódio ocorrido em 2019, envolvendo a figura de Mario Benedetti (1920-2009), quando propuseram renomear uma rua do centro de Montevidéu com o nome do escritor, por ocasião do centenário do seu nascimento e dos dez anos de sua morte. Na oportunidade, Arana, que era amigo pessoal de Benedetti, com quem compartilhou o mesmo setor político (Vertente Artiguista), manifestou-se contra a homenagem. Lembrou que o novelista, poeta e ensaísta se opunha a mudança de nomes das ruas: “O conhecia muito, e sabia perfeitamente a opinião que tinha – que é a mesma que eu tenho – de que os nomes das ruas não devem ser mudados, porque de alguma maneira, é impedir ao cidadão de sentir-se dono da própria cidade”.
No seu velório, ocorrido no átrio do Palácio Municipal, à Avenida 18 de Julio, número 1352, no centro da cidade, a engenheira Ana Carolina Cosse Garrido (1962), prefeita de Montevidéu, destacou a contribuição de Arana para a melhoria da área central, em especial da Avenida 18 de Julio e da Cidade Velha, período em que teve início o fechamento de trechos de ruas para a criação de calçadas para pedestres (peatonalização de vias). Merecem destaque os calçadões da Calle Sarandí (entre a Plaza Independencia e a Plaza Constitución) e da Calle Pérez Castellano (entre a Calle Piedras e a Rambla 25 de Agosto).
A prefeita lembrou os esforços de Arana para defender o patrimônio arquitetônico da cidade, quando fez campanha para reincorporar à lista de patrimônios protegidos um grande número de edifícios, que haviam sido removidos durante a ditadura.
Na década de 1980, Arana foi um dos fundadores e integrou o Grupo de Estudos Urbanos (GEU), junto com um grupo de profissionais e estudantes que em plena ditadura buscou criar consciência na população sobre a importância de proteger o patrimônio edificado e conseguiu frear a destruição de imóveis emblemáticos de Montevidéu.
A visão que Arana tinha do tema da preservação do patrimônio na cidade foi expressa na seguinte passagem de um texto escrito por ocasião da Bienal de Arquitetura de Quito (1990), no Equador e posteriormente publicado em várias revistas de arquitetura, intitulado, “Redescobrir a cidade esquecida”, publicado na revista digital Arquitexto / Vitruvius, em julho de 2001:
“Se nem tudo o que é velho é adequado, tampouco nem tudo o que é novo é desejável. A preservação, para ser plenamente válida, deve ser, mais do que a manutenção ou restauração, uma proposta dinâmica e potencializadora.
Mais que regressão nostálgica (…), a preservação deve constituir-se essencialmente como um ato de afirmação criadora, de descobrimento, originando o valor e a reabilitação vital.
Nem física nem socialmente a cidade é um fato compacto e homogêneo. A cidade – cenário de contradição, de encontro de unidade e fragmentação, de atraso e de estímulo – é terreno fértil para a degradação e o lucro, porém também para a experimentação e o salto qualitativo.
A coexistência da multiplicidade do passado possibilita o redescobrir, o reordenar, o recriar partes isoladas da cidade, presentificando-as, redimensionando seu sentido e vigência dentro da estrutura global da cidade”.
No final de sua vida, repetiu:
“Não se trata de uma visão nostálgica do passado, pois a final de contas o que importa é a cidade do presente e a cidade do futuro, porém em todo nosso presente, em nossa própria vida e no futuro, não podemos nos desfazer do passado porque se o apagamos como vestígio perdurável, desconhecemos a nós mesmos”.
Com a criação da Comissão Especial Permanente da Cidade Velha, em 1982, teve início também a reabilitação de edificações neste centro histórico. Exemplar é a transformação da antiga Casa de Francisco Antonio Gómez (1871-1874) e da vizinha Confeitaria El Telégrafo, à Calle 25 de Mayo, números 609-617, esquina Calle Juan Carlos Gómez, em sede da Junta Departamental de Montevidéu (1985-1989), isto é, da Câmara de Vereadores da cidade, reciclagem projetada pelos arquitetos Roberto Monteagudo, Horacio Herbert e Manuel Aguado.
Além da reabilitação de diversas edificações de interesse cultural, a Comissão Especial Permanente da Cidade Velha, criada em 1982, apoiou a construção de novas edificações que foram incorporadas ao tecido tradicional, respeitando as preexistências, fazendo com que, numa linguagem contemporânea – não cometendo o equívoco de imitar as antigas – se harmonizassem com estas. Um exemplo incontestável é o edifício comercial e de escritórios que abriga o McDonald’s (1993-1994), construído na Calle Sarandí, número 558 (na Plaza Constitución), de autoria dos arquitetos Conrado Pintos, Alberto Valenti e Arturo Silva Montero.
Montevidéu, durante a administração municipal liderada por Arana, implementou o Plano de Ordenamento Territorial de Montevidéu para disciplinar aspectos edilícios e urbanísticos da cidade, que ostentou na época o título de “capital cultural de iberoamerica”. A elaboração deste plano também foi citada na manifestação da prefeita, no velório de Arana.
Sua administração organizou também o V Congresso Latino-americano da Cultura Arquitetônica e Urbanística, através da Unidade Central de Planificação, da Divisão de Planificação Territorial, encabeçada pelo arquiteto Nelson Inda – profissional que viveu em Porto Alegre durante o período ditatorial no Uruguai -, e pela Unidade para a Proteção do Patrimônio, cujo coordenador geral era o arquiteto Gustavo Aller Maisonave. O evento, ocorreu de 18 a 22 de novembro de 1996. Na oportunidade a prefeitura, com o apoio da Junta de Andalucía e com a Faculdade de Arquitetura da Universidade da República, lançaram a segunda edição do Guia Arquitetônico e Urbanístico de Montevidéu, publicado pela municipalidade com o Editorial Dos Puntos, preciosa obra sobre a capital platina.
Ana Carolina Cosse, na sua despedida de Arana, valorizou ainda o impulso que o arquiteto deu às cooperativas habitacionais ao longo de sua carreira, criando cooperativas piloto e colaborando com o Centro Cooperativista Uruguaio para permitir que edifícios antigos pudessem ser transformados em cooperativas.
No exercício da profissão, além da atividade desenvolvida no seu atelier particular – que durante uma década compartilhou com o arquiteto Mario Spallanzani (1935) -, Arana foi arquiteto e Coordenador de Habitação no Centro Cooperativista do Uruguay (CCU) e membro da equipe interdisciplinar do CCU para projeto e direção de conjuntos habitacionais feitos com recursos de poupança ou por ajuda mútua, seguindo as diretrizes da Lei Nacional de Habitação (1968), em Montevidéu e no interior do Uruguai (1971). Merece destaque, o Conjunto Habitacional Barrio Norte (1980-1985), na Wilson Ferreira Aldunate esquina Francisco Maldonado, no norte da cidade de Maldonado, projetado pelos arquitetos Mariano Arana, Jack Couriel (1947), Ana Gravina, Mario Spallanzani e engenheiro Benjamín Nahoum Abouaf (assessor estrutural).
No campo da arquitetura, Arana deixou livros e artigos de relevância para entender a cultura arquitetônica internacional, uruguaia e montevideana. Com Lorenzo Garabelli (1932-2007), com quem compartilhou a docência de história da arquitetura, publicou “La Bauhaus de ayer y Hoy” (1977), e “Le Corbusier en perspectiva” (1977), ambos em Montevidéu; e “Cronologia de la arquitectura moderna” (1981), publicado em Buenos Aires; com o saudoso professor José Luis Livni (1943-1996), publicou “Documentos para uma historia de la arquitectura nacional”, na revista “Arquitectura”, de Montevidéu, e “Uruguay, búsqueda de uma arquitectura apropriada”, texto que fez parte do livro “Nueva Arquitectura em America Latina: presente y futuro” (1990), publicado no México.
Merecem destaque na sua produção escrita “El Montevideo de la expansión (1868-1915)”, publicado por Ediciones de la Banda Oriental, de Montevidéu, no ano de 1986, escrito com Ricardo Álvarez Lenzi (1928-2003) e Lívia Bocchiardo. O livro é baseado em uma pesquisa que os três autores desenvolveram entre 1981 e 1984 sobre “A iniciativa privada e a especulação imobiliária em Montevidéu entre o último terço do século XIX e 1915”; “Arquitectura renovadora en Montevideo 1915-1940: reflexiones sobre un período fecundo de la arquitectura en el Uruguay”, publicado em Montevidéu, pelo Instituto de História da Arquitetura, da Faculdade de Arquitetura da Universidade da República (UdelaR), com a Fundação de Cultura Universitária (FCU), em 1995, que escreveu com Lorenzo Garabelli, onde os autores tratam de um dos momentos mais importantes da produção arquitetônica da capital uruguaia, quando emergiram obras de uma geração de arquitetos, fruto de múltiplas influências europeias e estadunidenses e de fatores emergentes da própria realidade local, cuja relevância ultrapassou as fronteiras do país, especialmente à partir da visita de Le Corbusier, em 1929; e “Arquitectura y diseño Art Déco en el Uruguay”, escrito com Salvador Schelotto, Cecília Ponte e Andrés Mazzini, publicado pelo Instituto de História da Arquitetura, da Faculdade de Arquitetura da Universidade da República, conjuntamente com o Editorial Dos Puntos, capitaneado por Julio Gaeta, atualmente radicado no México. A publicação é de 1999, foi apoiada pela Embaixada da França no Uruguai. Trata-se de um aprofundado estudo sobre a influência do estilo emanado da França, que no território uruguaio, foi assumido de maneira original e criativa, e que é uma das manifestações mais fortes percebidas na renovação da arquitetura no caminho da modernidade.
O último livro intitulado “Papeles dispersos: Arte, Patrimônio y Sociedade”, Arana resgata momentos significativos da arquitetura, do urbanismo e da arte nacional e internacional, do patrimônio cultural uruguaio e de personagens relevantes na sua vida pessoal e profissional, além de abordar temas sociais como os afrodescendentes no Uruguai e a habitação social no país. A obra, dedicada aos sobrinhos e sobrinhos netos, reafirma o seu compromisso com a cidade, sua arquitetura e sua gente.
Por sua trajetória acadêmica, depois de ter sido velado no átrio da Intendência Municipal e do cortejo fúnebre ter passado pela Huella de Seregni (sede da Frente Ampla), em 5 de junho, o corpo de Mariano Arana foi levado também à frente da Faculdade de Arquitetura da Universidade da República (no Bulevar Artigas), para que colegas, docentes mais jovens, funcionários e estudantes pudessem demonstrar o carinho e o apreço pelo querido ex-professor e dele se despedir: “Muchas gracias profesor. Hasta siempre”. Portando cartazes com letras, formaram estas palavras, várias pessoas que de pé, nas escadarias de acesso ao prédio, receberam o carro fúnebre. Depositando flores no veículo, e com longos aplausos, os presentes expressaram coletivamente sua gratidão, antes do corpo ser levado ao Cemitério de Buceo, onde foi sepultado. Pelo exemplo legado como educador e político, Arana foi merecedor deste gesto, que, à distância, também compartilhamos, todos os que tiveram o privilégio de conhece-lo e/ou que com ele conviveram, seja através de sua obra ou pessoalmente, agradecem. Descanse querido mestre.
Bibliografia:
ARANA, Mariano, LENZI, Ricardo Álvarez & BOCCHIARDO, Lívia. El Montevideo de la expansión (1868-1915). Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 1986, 164p.
ARANA, Mariano & GARABELLI, Lorenzo. Arquitectura renovadora en Montevideo 1915-1940: reflexiones sobre un período fecundo de la arquitectura en el Uruguay. Montevidéu: Instituto de Historia de la Arquitectura / Facultad de Arquitectura / Universidad de la Republica; Fundación de Cultura Universitaria, 1995, 96p.
ARANA, Mariano, SCHELOTTO, Salvador, PONTE, Cecília & MAZZINI, Andrés. Arquitectura y diseño Art Déco en el Uruguay. Montevidéu: Editorial Dos Puntos; Instituto de Historia de la Arquitectura / Facultad de Arquitectura / Universidad de la Republica, 1999, 139p.
ARANA, Mariano. Redescobrir a cidade esquecida. Revista digital Arquitextos, São Paulo, n. 02.014.10, Vitruvius, julho de 2001.
ARANA, Mariano. Papeles dispersos: Arte, Patrimonio y Sociedad. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 2021, 238p.
GAETA, Julio C. (Coord.). Guia Arquitetônico e Urbanístico de Montevidéu. Montevidéu: Intendencia de Montevideo; Editorial Dos Puntos, 2ª edição, 1996.
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Foto da Capa: Passagem do corpo de Mariano Arana na Faculdade de Arquitetura a caminho do Cemitério de Buceo. Fonte: Universidad de la República