Ainda é bem difícil para muitas pessoas entender o porquê do banimento de determinadas palavras que eram usadas “inocentemente” em nosso cotidiano antes que a consciência de dor e de racismo começasse a gritar que não. Volta e meia, a discussão toma conta de uma conversa inocente – ou culpada! A abordagem não é nova, mas ainda se estabelece como necessária.
A ideia do branco como algo positivo está impregnada em muitos vocábulos e expressões que, na contrapartida, reforçam a associação entre preto e comportamento negativo. Um exemplo clássico: inveja branca. Se é branca, tudo bem, não é tão ruim, né? Mas uma inveja preta, bom, aí já é feio, já é ruim. E por oposição aí vai em uma lista interminável de palavrinhas e expressões que sedimentam o negro como ruim: ovelha negra, mercado negro, a coisa tá preta, lista negra… Tantas outras, sabemos.
Há também as palavrinhas sedimentadas como normais. Morena e mulata por exemplo. Morena para se referir a uma mulher negra traz tanto preconceito que… pelamordedeus! Ainda hoje, né? É que morena ameniza… NÃO precisamos amenizar, ok? Não é ruim ser negro, tá? E não, não é legal usar mulata ou mulato! O termo animaliza a pessoa; sua origem é pejorativa. Talvez você não saiba, mas intua que mulata(o) é uma palavra derivada de mulo(a), que vem a ser a cruza de duas espécies diferentes: o cavalo (égua) e o jumento. Quando os nobres senhores portugueses começaram a ver o fruto de seus estupros e abusos sexuais nascendo, não tiveram o menor pudor em assumir que ali estava o resultado da mistura de duas “espécies”: o branco com o preto. E assim os termos mulato e mulata, mulatinho e mulatinha, passaram a ser usados corriqueiramente para designar essas crianças, essas pessoas, originadas da violência.
Na escola, a gente aprendia diversos termos relativos à hipervalorizada miscigenação no Brasil: mulato, cafuzo, mameluco… O que a gente não aprendia é que essa miscigenação foi iniciada pela violência, pelo jogo de poder. E é isso que dói. É por isso a luta para que algumas palavras não sejam usadas.
Ah, mas existem muitos casais mistos gerando filhos mestiços que são frutos de amor.
Ah, mas isso foi há séculos. Hoje a palavra perdeu esse sentido.
Sim, sim. Mas o que estamos vivendo hoje, de forma mais acelerada e explícita?
Estamos passando por uma revolução. Estamos vivendo uma tomada de consciência muito forte, que exige alguns sacrifícios, entre eles o da condenação de determinadas palavras. É clichê e é real: situações extremas exigem medidas extremas.
Eu sou uma mulher negra criada em um sistema de branquitude, com conceitos, costumes, etiquetas e padrões majoritariamente brancos, europeizados, em detrimento da tradição africana que também deveria ter tido espaço em minha formação. Mas não teve. Tardiamente, estou adquirindo uma consciência que deveria nos ser passada desde que nascemos, sistematizada na escola e fortalecida pela sociedade de forma natural, sem forçar barra, sem radicalizar.
Neste momento de transição, radicalizar é preciso e necessário. Há um objetivo explícito e é uma necessidade urgente. Olha aí: escrevi explícito para fugir do claro. Vivo em um autopoliciamento frequente que me impus conscientemente. Termos como claro, esclarecer etc., por oposição a escuro, podem trazem uma conotação de supremacia branca.
Revisão de texto: Rodrigo Bittencourt