Era uma noite de muita chuva em Recife, fato que me tirava o ânimo de honrar o convite que me fora feito para me juntar às comemorações do aniversário de um coletivo. A cidade havia passado o dia soturna, a noite chegara antecipada. Certifiquei-me de que o evento estava mantido e saí de casa. Para evitar maiores transtornos, fui de transporte público: esses caminhões adaptados para carregar o povo, pelo menos, não se intimidam com os alagados.
A cidade era escuridão e borrasca.
O encontro ocorria na antiga sede da Ação Católica Operária. O espaço estava lotado. O público teve que se comprimir, ainda mais, no grande salão de entrada por conta do aguaceiro que ensopava as áreas externas. Eu e uma meia dúzia éramos os únicos homens ali, as demais pessoas eram mulheres, tendo em comum a referência ao Grupo Mulher Maravilha (GMM), que ali completava meio século.
Sim: o nome tem alguma coisa a ver com a personagem da TV (e atualmente do cinema). Mas, é na captura da denominação do antigo seriado que elas já mostravam sua força. Mulher Maravilha não era aquela Miss América que, de salto alto, protegia pessoas indefesas com golpes de um chicote mágico: maravilhosas eram elas, que atuando em pleno governo ditatorial de Médici, nos subúrbios de uma cidade grande e ainda há décadas de uma Lei Maria da Penha, se organizavam, inicialmente, para apontar os problemas e encaminhar soluções para a realidade de seu bairro, cuja tradicional nomenclatura parecia até ter sido inventada por elas: Nova Descoberta.
Em 1975, quando o Grupo Mulher Maravilha surge, o Brasil era breu e tormenta.
Os militares exerciam o poder de eliminar os corpos subversivos. Lourdes Luna, a fundadora, conta que anos antes de criá-lo, duas amigas perseguidas pelo regime se abrigavam em sua casa. E, juntas a outras mulheres, atuavam clandestinamente na formação e organização popular. Porém, a condição feminina também se encontrava ameaçada pelo machismo no seio dos setores progressistas, que, mesmo não representando (imediatamente) perigo mortal para seus corpos, não deixavam de reproduzir o encarceramento de suas autonomias.
Por conseguinte, é em meio não apenas às forças da opressão militar, mas também à insensibilidade das lideranças masculinas da época, que essas mulheres levam outras a descobrirem o que, então, para muitas, ainda era novidade: a força feminina.
A atuação nas penumbras da tirania se dava, principalmente, via processos de formação de consciências: conversas quase que caseiras, debates quase que despretensiosos, palestras quase que frugais, conduzindo à real intenção de mobilizar a sociedade e, principalmente, de empoderar as mulheres contra a dominação vigente.
Bem semeadas, as sementes deram seus frutos ainda nos tempos da repressão. Mães e filhas começam a gerar sua própria renda, tornando-se independentes da figura patriarcal. Associações de moradores e de representação comunitária abrem suas pautas para as problemáticas femininas. Começa a chegar aos poderosos da cidade vozes antes silenciadas.
Naquela noite, fui à celebração a convite de Lourdes, que conheci por intermédio de uma amiga. Lá encontrei outras que há tempos não via e fui apresentado a outras mais.
Continuava chovendo muito quando voltei para casa.
50 anos depois de 1975, não é só Recife, não é apenas o Brasil: é o mundo que parece estar dentro de uma tempestade.
Contudo, voltando das festividades, fica a convicção de que é pelo que esperançamos juntos com o GMM e toda forma de organização popular que não nos deixaremos importunar por chuvosas noites escuras, pois, sempre vêm dias de céu limpo e luz maravilhosa.
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Foto da Capa: Reprodução de Redes Sociais.