Você não pode ser autista porque você fala. Isso foi ouvido por Daniela, mulher autista adulta, em um consultório médico. Juliana já escutou que não podia ser autista, afinal era uma servidora pública concursada. O autismo ainda é visto por muitos como uma característica masculina, o que dificulta o acesso das mulheres ao diagnóstico.
Lembre-se que a simbologia do autismo está vinculada à cor azul. Mas autistas também vestem rosa. E lilás, laranja, preto, branco, a cor que quiserem. Porém, o estereótipo do autista menino resiste, afastando mulheres do diagnóstico e, mesmo depois disso, fazendo com que suas identidades sejam invalidadas.
Especialistas apontam diversas outras razões para a invisibilidade de mulheres autistas. As próprias pesquisas acerca do autismo estão entre as causas já que focaram seus estudos em meninos. Um caso em que a ciência acabou por reforçar os preconceitos que já existiam. Afinal, por que estudar autistas meninas se elas são tão poucas?
Os estudos tampouco eram eficientes em detectar o autismo em mulheres já que os critérios eram estabelecidos com base unicamente no comportamento masculino. E mulheres autistas se saem melhor em mascarar seu autismo, pois são mais capazes de parecer “normais” em situações sociais do que seus pares masculinos. Ou seja, são percebidas de forma diferente pelas demais pessoas. Mesmo especialistas falham e afirmam que elas não parecem ou agem como autistas.
A médica Raquel del Monde, expert na matéria, ressalta que “à medida que as manifestações do autismo tornam-se mais sutis e difusas, maior a exigência de um conhecimento aprofundado acerca da constelação de particularidades que o definem. Essa é a principal razão do subdiagnóstico das mulheres autistas.”
Cada vez mais mulheres procuram saber se são autistas. Francesca Happé, especialista do King’s College London, diz que esse é um fruto da crescente conscientização sobre o autismo, o que faz com que muitas mulheres procurem um primeiro diagnóstico na meia-idade.
Essa caminhada é motivada pelo sentir-se diferente, pela recorrente sensação de inadequação social, de ser um “fracasso”, pelas diferenças que não são aceitas pela sociedade, o que gera sofrimento psíquico. Esses são temas muito presentes nos depoimentos de mulheres que receberam o diagnóstico quando adultas.
Os relatos também trazem episódios de bullying e de ser entupida de medicamentos desnecessários. Sentimentos não muito distantes do que relatou Andrea Werner, deputada estadual paulista (PSB), que descobriu recentemente ser autista, aos 47 anos. Ela conta que era chamada de “garota estranha” e de “sem noção”, teve depressão e, durante a adolescência, achava a vida horrível e rezava pedindo a Deus para morrer.
Andrea é hoje uma das principais lideranças que lutam por inclusão. Mãe de um menino autista, o Theo, foi eleita deputada estadual. Seu blog, Lagarta Vira Pupa, foi uma das primeiras referências que tive sobre ser mãe ou pai atípico. Não só minha, como de muitos pais e mães Brasil afora. O blog cresceu, invadiu o mundo físico e virou o Instituto Lagarta Vira Pupa.
Em seu relato, lembra das dificuldades no trabalho, ela que foi diversas vezes selecionada para vagas muito desejadas por seu desempenho (ela também foi diagnosticada com altas habilidades e superdotação). Contudo, não conseguia se fixar em nenhum emprego, tendo a falta de traquejo social e as dificuldades com socialização apontadas como culpadas. História semelhante a de muitos autistas, homens ou mulheres.
Estudos mostram ainda que mulheres autistas são mais sujeitas a diagnósticos equivocados do que homens e que a anorexia e as tentativas de suicídio são mais comuns entre elas do que entre as neurotípicas. Andrea Werner lembra que “as mulheres autistas estão mais propensas a sofrer violência sexual, porque acreditam mais nas pessoas, desconfiam menos porque têm menos leitura social.” E, como lembra a jornalista Amelia Hill, sem o diagnóstico elas sequer sabem que são vulneráveis à manipulação e abuso.
Como é se descobrir autista quando adulta?
A sensação foi de alívio por finalmente ter uma resposta, disse uma mulher autista ouvida pelo The Guardian, “diagnóstico é renascimento”. Outra leitora respondeu que “havia buscado saber por 45 anos quem eu era. Eu não tinha identidade – era como olhar em um espelho sem reflexo.” Finalmente, ela entendeu. Juliana, que foi citada no início da matéria disse: “Eu chorei de alívio”.
Muitos depoimentos trazem a sensação reconfortante de se descobrir diferente e não ser uma pessoa incompleta ou defeituosa, entendendo o diagnóstico como uma possibilidade de autoconhecimento. Como lembra Andrea Werner: “Quando diagnosticam um adulto, eles vão tratar o passado, porque são pessoas que sofreram com inadequação e tiveram a autoestima destruída sem saber o motivo. Então você vai tentar curar esse passado através do diagnóstico.”
Muitas mulheres relatam as dificuldades que ocorrem após receber o diagnóstico, quais as consequências dele, nas suas relações pessoais e na sua visão de si mesmas. Para essas pessoas e todas as demais que estão em busca de se entender melhor, recordo as palavras de Raquel del Monde: “Diagnóstico não é rótulo. Diagnóstico é norte, é direcionamento, é ponto de partida, é acesso, é garantia de direitos. Diagnóstico é identidade”.