Em uma sociedade marcada por diferenças e discriminações, é primordial a leitura da sociedade através de categorias sociais como raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia, faixa etária, entre outras. Desta forma é possível fazer uma leitura do mundo, entendendo a sua complexidade enquanto indivíduos e experiências humanas.
É sabido que mulheres negras sempre foram colocadas em situação de desvantagem nos ambientes laborais, seja quando comparadas aos homens negros e mulheres brancas; ou quando comparadas aos homens brancos, no qual essa desvantagem é ainda maior. Nesse sentido, o mercado de trabalho é o meio no qual se revela de forma incisiva a estrutura de desigualdade social, no qual os marcadores sociais se sobrepõem e desencadeiam consequências sobre as sobrevivências dignas, oriundas do racismo, do machismo, sexismo, misoginia e, em muitas vezes ainda, a outras formas de discriminação.
Identidades de grupo se consolidam através da cobrança por políticas públicas direcionadas e capazes de sanar as iniquidades, bem como abranger as especificidades de mulheres negras, seus filhos e toda a população negra, com o objetivo de contribuir efetivamente para a proteção social da população brasileira majoritária, tida como grupos minoritários.
Mulheres negras em sua maioria são submetidas às rotinas exaustivas e nunca foram colocadas em uma posição de fragilidade, frente ao trabalho. Em momentos de crise econômica fica evidente a expressão das desigualdades através do mercado de trabalho.
Tenho uma vivência de 25 anos na assistência de enfermagem no Sistema Único de Saúde e na formação de técnicas e técnicos de enfermagem e enfermeiras e enfermeiros. Na condição de mulher negra, cientista social e sanitarista, analiso o contexto de mulheres negras e a enfermagem e a História Negra da Enfermagem no Brasil.
A pandemia da COVID-19 nos mostrou a relevância social da Enfermagem e a sua mobilização no combate à doença, no cuidado aos doentes e nas medidas preventivas tendo como a principal medida a vacinação.
A enfermagem cuidou com ciência, ética e profissionalismo, e também foi exposta ao risco biológico. E nesse contexto surgem várias ações em prol da profissão e, nessa oportunidade, cito a Articulação Nacional de Enfermagem Negra (ANEN).
E estabelecendo essa relação entre mulheres negras, enfermagem e cuidado, é importante também refletir e agir sobre quem são essas pessoas, protagonistas do cuidado?
Dados publicados pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) em 2017 revelam que a partir de um total de 1.804.535 profissionais pesquisados, 85,1% são Mulheres, 23% Enfermeiros, 77% Técnicos e Auxiliares de Enfermagem. Em relação ao quesito raça/cor: 53% se autodeclararam Negras, 42% Brancas, 1,9% Amarelas e 0,6% Indígenas. Quando analisamos o quantitativo das profissionais em estudo e sua distribuição por raça e escolaridade constata-se que 57,4% são trabalhadoras negras no nível médio, sob o comando de 57,9% de Enfermeiras brancas
A grande força de trabalho na saúde é negra em sua maioria. No dia 26 de abril, um projeto de lei foi aprovado e garantirá a abertura de crédito especial no orçamento federal de 2023 para o pagamento do piso da enfermagem, uma espera de 68 anos.
Esse recorte é para demonstrar os marcadores sociais que circundam o mercado de trabalho da enfermagem: gênero, classe e raça atravessam a vida das profissionais de enfermagem. Duplas ou mais jornadas de trabalho ainda são necessárias para a garantia de recursos para a sua sobrevivência e de seus dependentes e/ou familiares, e ao mesmo tempo, a possibilidade de realização de sonhos materiais como o investimento em educação, habitação e melhores condições de vida.
Mulheres negras da enfermagem se mobilizam para a garantia de um Sistema Único de Saúde universal, equânime e contra o racismo institucional.
Em 12 de maio comemoramos o Dia do Enfermeiro e, no dia 20, o Dia dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem, momento em que mais uma vez exaltaremos o legado de Mary Seacole e enfermeiras brasileiras como Ivone Lara, precursoras da enfermagem brasileira invisibilizadas pelo racismo estrutural.
*Gisele Cristina Tertuliano é Enfermeira, Cientista Social, Doutora em Saúde Coletiva.
Foto da Capa: Laura James / Pexels