Estava assistindo a um desses momentos típicos de nossas redes sociais que denominam “debates”, advirto que estou me acostumando a vê-los como “fighting verbal”. Este é um modelo de evento onde são postos dois seres humanos com ideias, dizem, colidentes para se espancarem verbalmente e, quem sabe, com alguma sorte, descambam para agressões físicas. No que vi, um dos momentos destacados, uma coisa que estão chamando de shorts e alguns são tão breves que poderemos chamá-los de “biquínis”, falava-se sobre o aborto. O jovem que se autodenominava de direita dizia-se contrário ao aborto e “em defesa da vida” que se desenvolvia no ventre. O outro, autointitulado de esquerda, defendia a partir de um discurso raso e genérico sobre direito ao aborto legal e, quando pressionado, ele se afirmou cristão, “defensor da vida” e contra a prática debatida quando não autorizada pela lei criminal.
Aqui, no meu silêncio de audiência, senti certa ausência (rimei audiência com ausência), pois ninguém falou das mulheres e me questiono se um dos dois, o primeiro por falar apenas da “vida que se forma no ventre da mulher” e o segundo pelo silêncio sepulcral sobre elas, se questionou: mulheres são seres humanos? Não imaginem que se trata de alguma ironia porque todas as vezes que me deparo com o debate sobre o aborto, um dos poucos temas sobre o qual o silêncio é ensurdecedor é: qual a situação da mulher que se vê diante do momento de decidir em realizar ou não a interrupção de uma gravidez pela remoção do feto ou embrião antes de este ter a capacidade de sobreviver fora do útero?
Limitemo-nos às regras de um debate produtivo e voltemo-nos exclusivamente àquilo que foi posto: o que pensamos sobre as hipóteses juridicamente autorizadas para a realização do aborto. Voltemos um passo e vejamos quais são elas. Do Código Penal extraímos:
“Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:
I- se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
II- se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.
E na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54 Distrito Federal, do Supremo Tribunal Federal, lemos:
“ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações.
FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER –
LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE –
AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME –
INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.”
Na hipótese do inciso I do art. 128, temos um conflito evidente: a vida da mulher ou do ser em gestação. São muitos os detalhes que podem ser aventados e “daria um livro” dissertar sobre: a necessidade ou não do consentimento da mulher, se ela não estando no gozo da capacidade de expressar sua vontade, a exemplo do coma, se seria necessária a autorização de alguém, se esta é uma decisão exclusivamente do profissional médico, etc. O que se afigura aqui é uma situação delicada, porém de mais simples escolha dentro daquilo que chamamos de normalidade empática, qual seja: opta-se por aquela vida que está diante de nós e não por outra que sequer vemos. E sem dúvida alguma, eu optaria pela vida da mulher.
A hipótese posta pelo STF, escrita em boas quatro centenas de páginas, também não nos parece complexa. Embora tenha igual delicadeza da anterior. A anencefalia é uma má formação que acontece durante a gestação, entre o 16º e 26º dia e é caracterizada pela ausência do encéfalo e calota craniana, além de cerebelo e meninge que se tornam rudimentares.
Lembremo-nos do que popularmente é conhecido como “morte cerebral” e denominada nos protocolos de saúde de “morte encefálica”, esta “é a definição legal de morte. É a completa e irreversível parada de todas as funções do cérebro. Isto significa que, como resultado de severa agressão ou ferimento grave no cérebro, o sangue que vem do corpo e supre o cérebro é bloqueado e o cérebro morre”. Em situações como essas, muitas famílias têm feito a opção de desligar aparelhos e, por exemplo, encerrar os batimentos cardíacos do ente querido. Atentemos que estamos falando de um corpo que possui cérebro cujo “funcionamento findou”. Dito isto, não creio ser justo qualquer juízo condenatório de uma mulher que tome esta decisão pelo aborto, excetuando-se a possibilidade de entendermos que ela é apenas uma caixa de preservação de um corpo que sairá de um lugar e irá para outro, o ataúde. Este detalhe nos encaminha à pergunta de início: mulheres são seres humanos?
A terceira hipótese excludente do crime é aquela em que a gravidez é resultado de estupro. Livros e livros são escritos sobre o estupro e quando ele ocorre, a começar pelo fato de que não apenas as mulheres ou exclusivamente as mulheres cis podem ser vítimas de tal crime. Fiquemos com o conceito do Código Penal em seu art. 213, que assim diz do estupro: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. É sempre bom lembrar que uma mulher que iniciou uma gestação nessas condições foi, antes e acima de tudo, vítima, vítima de um crime. Segundo a Resolução 243/2021 do Conselho Nacional do Ministério Público:
“Art. 3º Entende-se por vítima qualquer pessoa natural que tenha sofrido danos físicos, emocionais, em sua própria pessoa, ou em seus bens, causados diretamente pela prática de um crime, ato infracional, calamidade pública, desastres naturais ou graves violações de direitos humanos, sendo destinatários da proteção integral de que trata a presente Resolução:”
Poderíamos ter uma interpretação mais ampliativa, no entanto, para o que nos interessa, basta, qual seja: pensando na mulher que, para nós, obviamente é um ser humano, quais as repercussões na continuidade de uma gravidez para uma mulher que foi vítima de um estupro? Pensemos em situações prosaicas de nossa sociedade: adolescentes e crianças vítimas de pais, avós, tios, amigos dos pais, etc.; mulheres casadas vítimas de estupros perpetrados por colegas de trabalho; mulheres ou meninas vítimas de “estupros corretivos” que são aqueles cometidos contra mulheres lésbicas sob o patrocínio de “pais e responsáveis” (gosto dessa construção porque sempre ouço “pais irresponsáveis”) para que essas “se transformem em mulheres normais”; ou, no limite, qualquer mulher, o que no direito se denomina de “qualquer do povo” (art. 301 do Código Penal), que pelo simples fato de ser mulher se constitui em vítima potencial de tamanho abuso. Nessas e em tantas outras, que tipo de reação emocional deve-se esperar de uma mulher durante nove meses de gestação, em relação à sua condição ou daquela fusão indesejada entre o espermatozoide e o óvulo que está dentro dela? Não vou transcrever algumas dezenas de estudos sobre o tema e que denunciam a gravidade psicológica e psiquiátrica que atinge as mulheres submetidas ao duplo abuso de serem estupradas e depois terem que ouvir juízos condenatórios sobre o fato de especularem a realização do aborto ou serem expulsas de suas comunidades religiosas ou políticas, por exemplo. Sugiro o uso da seguinte chave de busca: “vítima de estupro psicologia scielo”. Após esta consulta, surgirão bem mais de 200 textos, dos quais li pelo menos 10 e os percebi como muito bem embasados.
Quais as espécies de consequências sobre a psique de mulheres e meninas vítimas do estupro, não apenas durante o ato de violência, mas nos nove meses que se seguirão e após o parto? É com muito pesar que vejo o debate, capitaneado em sua maioria por homens – padres, rabinos, pastores, políticos, etc. –, ser travado e nunca ouço nada ser dito sobre este grande ausente: a condição da mulher que foi estuprada. Sem qualquer respeito às opiniões contrárias: fico com a escolha das mulheres.
Fábio André de Farias é desembargador corregedor do Tribunal Regional do Trabalho da Sexta Região (PE).
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Foto da Capa: Freepik