Recentemente escrevi que livros me acolhem. Por isso, quero compartilhar aqui a segunda edição de uma iniciativa estimulante, Mulheres Serranas 2 – Elas Fazem a História (Editora Escrita Serrana, 2024), livro que traz textos e reflexões de 18 mulheres sobre suas trajetórias, vivências, dificuldades, lembranças de família, afetos. Estou com elas! É o “protagonismo das mulheres desta terra, que traz narrativas sob a ótica e essência feminina, marcantes em nossos costumes, vivas em nossas memórias”, diz a editora Mariane Soares na contracapa. O lançamento foi no dia 1º de setembro, em São Francisco de Paula, com sessão coletiva de autógrafos no CTG Rodeio Serrano. Um momento de muita emoção! Meu desafio foi saudar a diversidade em uma homenagem singela às mulheres que me criaram. Estendi, mais uma vez, o olhar para o significado de palavras como deficiência, preconceito, inclusão, acessibilidade, cuidando para não cair nas emboscadas da superação e do capacitismo.
Comecei com um poema do mineiro Altair Sousa, que diz muito do que é SER – “Ser o melhor pra quê? / Pra quem? / A qual custo? / Ser a gente já é tarefa árdua demais, / já é o bastante! / Na tarefa do ser ‘o melhor’ / o parâmetro é quase sempre o outro, / Já no exercício do ser ‘o que nos toca’ / a medida é sempre a gente”. E assim parti para a minha reflexão.
Os espaços de legitimação das diferenças são pontuais e frágeis
O fundamental é entender que incluir não é concessão, como superficialmente são percebidos os direitos de pessoas com deficiência. Temos consciência desses direitos, mas as agressões são cotidianas. Optei, então, por respirar fundo e seguir firme porque não há diversidade sem respeito pelo outro. Meu desejo é viver em uma sociedade que respeite as pessoas, independente da condição física, intelectual, social, idade, aparência, raça, cor da pele, opção sexual, gênero, enfim. Uma sociedade que entenda as múltiplas possibilidades que as diferenças trazem. Não queremos o enquadramento que segrega. O machismo que sufoca. Queremos dignidade.
O que há de concreto no cotidiano das pessoas com deficiência? O que dizer do capacitismo que permeia os ambientes e nos vê como inferiores ou menos capazes que os demais? Quem promove a inclusão na sociedade contemporânea? São muitas as inquietações e perguntas. Mas o que percebo é uma exigência de normalização/superação. Inversão cruel de valores porque não é a pessoa com deficiência que deve “normalizar-se” ou “superar-se”. A sociedade precisa atender às necessidades da sua gente múltipla. Mas o que predomina é uma inércia, no sentido de esperar que nós, os “estranhos no ninho”, superemos barreiras, sejam quais forem.
Sempre digo e repito: esta é uma questão que deve ser assumida pelos governos em todas as esferas públicas, em parceria com as famílias, as comunidades e as escolas. Mas para isso é preciso desacomodar conceitos seculares e mostrar que a sociedade é o resultado da soma das diferenças e não de indivíduos hipoteticamente iguais. Incluir é possibilitar a independência das pessoas, efetivar um direito social, sem julgamento. É importante lembrar que temos a Lei Brasileira de Inclusão, sancionada em 2015, com base na Convenção da ONU, criada para assegurar o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais.
Mas quem efetivamente está interessado nesta Lei que garante direitos para mais de 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, conforme dados levantados pelo IBGE/Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 2019? Falo de quase 25% da população do país, o que não é pouco! Falo de crianças e jovens que precisam estar nas escolas sem sofrer preconceito. Falo de pessoas que envelhecem sem condições de uma vida digna. Falo de mulheres que precisam ser inseridas no mercado de trabalho e exercer seus direitos e deveres com autonomia e igualdade.
Nós, os chamados deficientes, temos limites, sim. E a sociedade nos violenta ao não reconhecer esses limites e exigir de nós a tal “superação”, uma forma de subestimar nossas potencialidades. A sociedade nos violenta quando nos faz acreditar que nossos corpos, mentes, desenvolvimento físico e intelectual, por não corresponderem ao script padrão, não são normais. Nossa existência não é legítima como as demais porque nosso modo de estar no mundo não sintoniza com o instituído. Somos humanas e não podemos nos violar, física e emocionalmente, na busca de uma perfeição que não tem sentido. Viver assim é viver sob uma contínua cobrança. Mas a dívida não é nossa!
A grande tarefa é educar para a diversidade. Ensinar, dialogar e dividir experiências é um compromisso que não pode ficar para amanhã. O caminho é alertar e sensibilizar para as limitações das pessoas, com políticas públicas que priorizem a inclusão, aliadas a uma educação que acolha as dificuldades de tanta gente. E é um dever das administrações municipais, estaduais e federais, em sintonia com suas comunidades. Cabe às empresas entender os limites de uma pessoa com deficiência, estimular a inserção no trabalho, orientar e não apenas jogá-la em uma função para cumprir a lei. Quase ninguém vê a singularidade de uma pessoa com deficiência que transpõe infinitas barreiras físicas e sociais diariamente.
Ver o outro com sensibilidade é transformador
Por que é tão difícil o pensamento coletivo, livre de preconceito? Ao longo dos séculos, um tipo humano padrão foi usado como referência para a construção dos espaços, para a oferta de oportunidades e para a vida plena, tanto pessoal como profissional. Construiu-se uma teoria da normalidade que ignorou os “diferentes”: pessoas com deficiência intelectual, mental, visual, auditiva, física, com autismo, síndrome de Down, comunidade LGBTQi+, até estigmas tribais de raça, cor, nação, religião, classe social. Derrubar tais barreiras é um dos grandes desafios de cada um de nós.
É bom lembrar que temos a ANNABRA/Associação Nanismo Brasil, que luta por políticas públicas e leis de acessibilidade e inclusão, presidida pela advogada carioca Kenia Maria Rio. No RS, a ANNABRA é representada por Vélvit Severo, autora da cartilha “Escola para todos – NANISMO”, uma contribuição sensível para inserir o filho Théo na escola que, aos quatro anos, sofria bullying. A cartilha trabalha a conscientização de forma simples e lúdica, a partir do cotidiano de uma criança, mostrando que o respeito às diferenças é fundamental.
Nesta caminhada, diante do meu posicionamento e da luta contra o preconceito, fui denominada Embaixadora do Nanismo no Rio Grande do Sul, o que me orgulha muito. Sensibilizar os segmentos sociais, mostrando que temos características distintas e direito ao trabalho, ao lazer e à vida digna, é transformador.
Por trás da minha determinação estão mulheres serranas. Ao falar da minha trajetória, quero homenageá-las – minha mãe Corália, minha avó Sinhá e minhas tias Clori e Dalva, que me criaram e impulsionaram para ser quem sou, com lucidez, firmeza e carinho.
Foto da Capa: Montagem
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