A coragem é sempre exaltada nos filmes, nos feitos e nos caldos que engrossam as anedotas de final de semana. No entanto, hoje quero falar sobre o medo; esse afeto tão mal visto que nem queremos saber muito sobre ele.
Medos podem ser amigos, apesar de tudo. Afinal, é inegável a sua função protetiva, já que, às vezes, uma boa dose de medo nos libera de algumas ciladas e papelões. Em algum sentido, pode ser como comer. Quer dizer, ao regular mal as quantidades e as concentrações, a comida pode te lascar. Assim é também o medo. Em excesso, te paralisa e o que era defesa vira ataque. Quem já passou por uma crise de pânico entende rápido essa comparação.
Ancestrais, arcaicos, discretos, espalhafatosos, amargos, ressentidos, leves ou residuais. O cardápio de medos parece infinito. Muitos foram aprendidos, na verdade, ensinados por quem nos cuidou. Outras vezes foram importados de quem admiramos. Assim mesmo, os medos também podem surgir como nossa própria criação – a famosa “coisa da cabeça”.
Alguns medos são mais crônicos e trazem um mal-estar lancinante que começa a corroer desde dentro. É aí que se formam as chamadas fobias. Elas perfazem um mapa denso no psiquismo, um mapa que indica e alerta sobre os lugares onde está o objeto do medo. Essas exacerbações, tão exploradas pela psicologia e pela psicanálise, nem sempre contemplam aqueles medos que se disfarçam bem; que são possíveis de dissimular. É aí que as fobias ganham espaço nos manuais de psicopatologia.
A ideia do mapa fica mais forte ainda, quando entendemos que quem tem fobia tem uma sorte de proibição em mente, porque sabe onde visitar seu medo; sabe exatamente onde está aquilo a que teme. E, assim, sabe também formar suas estratégias de controle, literalmente, por onde anda na vida, etc.
Por sorte, todo esse aparente controle tem limites. É assim que se pode ter algum diálogo possível com o medo, por exemplo, quando nos fragilizamos diante dele e deixamos que ele nos conte algo sobre o nosso universo íntimo.
Entretanto, socialmente, há um comércio pujante de nossos medos. É assim que se vendem aparatos de segurança, grades, armas e guerras. O comércio do medo também dilata nosso individualismo, matando a ideia da formação espontânea de comunidade – aquela boa sensação de vizinhança que dispara vontades de dividir, seja o excedente que não uso, seja o bolo de laranja que recém saiu do forno. A prova mor é quando uma calamidade se aproxima. E lá se vai todo mundo naquela correria para o supermercado se encher de água e papel higiênico.
Nesse comércio, muitos medos são, na verdade, preconceitos. Não por nada se chamam homofobia, transfobia, aporofobia… Estão em exposição nas vitrines dessas lojas bizarras de ódio e segregação, os perfis dos propagadores de fake news. Com seu discurso de ódio, vão provocando um alarmismo, um sentimento de que há sempre um inimigo por perto, algo, alguém, uma ideia para te ferrar. É assim, na base do medo, que conseguem vender também o ódio.
Uma pena, pois, na verdade, são medos que já poderiam estar fora de circulação, no museu. E olharíamos para estas exposições com condescendência e diríamos: Olha só como éramos frágeis bobinhos! Como avançamos!
Oxalá!
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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