O dia era a Quarta-Feira de Cinzas e tivemos que passar uns dois pernoites numa cidadezinha do interior do Rio Grande do Norte. A minha atávica condição recifense encarava esta tarefa como algo de privação: não teria a possibilidade de seguir um último bloco em folia e, pior ainda, teria que conter a terça-feira de carnaval por conta da demanda no dia seguinte.
Foi no modo desse humor que, chegando lá, à noite, perto da pousada, fui assaltado pelo som estridente que vinha do fim de uma avenida: era um evento que, ao meu juízo, se pretendia carnavalesco. A poucas dezenas de metros de onde estávamos, uma multidão se aglomerava em torno de Paredões, que é como chamavam os conjuntos de possantes caixas de som montadas em estruturados reboques.
O que se tocava, à minha primeira impressão, não parecia música: não tinha melodia definida e nem notas executadas em algum instrumento conhecido. Os sons eram praticamente bips eletrônicos. Também não havia nenhuma estrofe ou verso: embaladas e emboladas aos bips, algumas frases eram proferidas por uma voz sintetizada.
Inicialmente aturdido (desumorado…) nos enclausuramos numa cafeteria, na mesa mais ao fundo. O que me parecia barulho diminuiu por um tempo. Todavia, logo que terminamos a refeição, aquelas ondas se avolumaram: parecia até que alguém, deliberadamente, aumentara o volume dos sistemas acústicos. Porém, a amplificação decorria do movimento das usinas sonoras em nossa direção.
A cafeteria tinha uma ampla porta de vidro pela qual pudemos ver a chegada da multidão em cortejo. Decidimos, então, sair e constatar de perto o que se passava. Era uma espécie de trio-elétrico, mas com o palco quase na altura do povo na rua: não era como aqueles que vemos no carnaval da Bahia. Também não entoava nada de axé-music e, muito menos, de frevo: era um grupo musical de pessoas muito jovens, cantando o gênero que há pouco nos impactara: era algo como rap ou funk.
Apesar da potência sonora, o conjunto praticamente não tinha instrumentos: havia alguém num teclado, provavelmente nas funções de sintetizador, e outro numa bateria eletrônica: sem membrana esticada, sem pratos de metal.
A multidão, de perto, mostrou seus rostos e faces: eram jovens e adolescentes, muitos e muitos. Os adultos perfilavam-se nas calçadas, acompanhando, desajeitados em ritmo, a passagem da moçada.
Aquele som que inicialmente chocou minha racionalidade agora desvelou seu sentido: é a expressão do universo daquela juventude. Por óbvio que isso pareça, não é a primeira coisa que vem à cabeça quando somos confrontados com essa estética que, desprovida de qualquer acúmulo de rebuscadas tradições musicais, é visceral.
No dia anterior, a terça de carnaval, já no exercício estratégico de me poupar para as atividades da quarta, fomos a um bloco de carnaval perto de casa. Vi passar amigos e amigas de longas datas e vi rostos familiares. A orquestra tocou os clássicos de nossos frevos de rua: conjunto afinado, portando inclusive duas tubas, assegurando o nível de qualidade do frevo executado.
Todavia, foi espremido entre a porta da cafeteria e a meninada que seguia a carreta energizada que me dei conta de que não tinha adolescentes e púberes no cordão recifense, como também quase não os vi nos encontros e grupos nos quais brinquei a folia de momo. As ruas também estavam apinhadas de gente, multidões também se formaram, muito maiores do que aquela no interior potiguar. Todavia, moçada e meninada não vi, só ouvi mencionados nas estrofes do hino do Galo da Madrugada ou no Frevo do Galo, de Amelinha.
Podem dizer que essa ausência é resultado de uma problemática geracional: um modo simpático de dizer que, por estar envelhecendo, só toparei com velhos sujeitos…
Contudo, a esse fato, podemos somar outro: numa perspectiva ampla do conceito, a arte é expressão de mundo. O mundo daqueles jovens não é o meu, não é o mundo daqueles que compõem as multidões que sigo em algazarra.
O bloco carnavalesco da terça foi fundado por estabelecidos profissionais liberais e assentados funcionários públicos, é frequentado por seus pares e circula num bairro de classe média da capital pernambucana.
É bem verdade que o frevo não nasceu desse segmento da sociedade, porém, sendo hoje tradição, terá nele seus defensores.
O frevo bem executado, tendo até tubas, é exigido por ouvidos de quem, em casa, já teve piano ou violão, que na escola teve iniciação musical. Ao som de exímios metais, sofisticadas passistas revelam quem já se elevou em passos de ballet. Não me parece ser esse o caso das novinhas e novinhos (termos recorrentes em suas músicas) naquele cortejo: não têm piano na sala de estar, a casa quase não tem cômodo; não têm ensino de música, a escola quase não tem aula; não têm dança clássica, aqueles corpos quase não têm deleites.
É esse mundo que quase não tem nada que a música, que quase não tem melodia e que quase não tem canto, expressa.
Assim, quase meus ouvidos não entenderam, mas havia música ali, havia uma expressão estética sensível às vivências em um mundo que não é o meu. Todavia, é o exercício dos gozos para além das vísceras que nos insere a todos no universo humano.
Obviamente, esses entendimentos racionais, necessariamente, não seduzem meu gosto musical carnavalesco: continuarei não gostando daquele tipo de som para os festejos de Momo, mesmo numa Quarta-Feira de Cinzas.
Contudo, a música estava lá. Havia intenção e desejo de deleite, havia a tentativa de dizer de um mundo. Havia a experiência de modo humano: aquela música era a expressão estética de um universo simbólico. E acredito que é a capacidade de pormos em exercício das musas a expressão de nosso universo que nos faz humanos.
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Foto da Capa: Marcelo Camargo / Agência Brasil