Não sei se vocês aí, meus seis ou sete leitores, viram, mas está no ar no serviço de streaming da Amazon Prime uma minissérie chamada Daisy Jones and The Six (foto da capa), sobre uma banda de rock que, em meio a conflitos artísticos, rancores pessoais, problemas de abusos de drogas e traições conjugais e fraternas grava um álbum que é uma obra-prima, se torna uma das maiores bandas dos anos 1970 e se dissolve espetacularmente no auge do sucesso, derrubada por seus conflitos internos. Uma história comum na mitologia do rock em geral, mas que nesse caso em particular é baseada vagamente na trajetória da banda Fleetwood Mac e sua maratona de cocaína e infidelidades na gravação de seu clássico disco Rumours. Mas o assunto aqui é só parcialmente esse, na verdade. Eu gostaria de começar não pela série, que é ok, o que está longe de ser um elogio, mas do livro do qual ela foi adaptada, a obra de mesmo título da escritora Taylor Jenkins Reed.
Daisy Jones and the Six, o livro, conta basicamente a mesma história, com uma que outra modificação ao longo do caminho. É estruturado como uma “história oral”, ou seja, uma colagem de trechos em primeira pessoa de entrevistas com várias pessoas que formam uma narrativa polifônica em que se preserva até mesmo o conflito de versões quando um fato tem mais de uma testemunha e nenhuma delas concorda sobre o desenrolar dos acontecimentos. Não é um formato exclusivo das histórias do mundo da música – é assim que a Nobel de Literatura Svetlana Alexievich construiu seus livros sobre a Rússia nos estertores da União Soviética, como Vozes de Chernobyl e Meninos de Zinco. Esse modelo da “história oral” só seria adotado como praticamente “oficial” para histórias do mundo da música (a ponto de ser muito utilizado por revistas e jornais, por exemplo) depois de ter sido magistralmente utilizado por Legs McNeil e Gillian McCain em seu fundamental relato sobre a história do punk, Mate-Me, Por Favor (1996).
Em Daisy Jones and the Six, o formato da “história oral” ajuda a dar alguma legitimidade ao conjunto, mas ao mesmo tempo expõe duas fragilidades gritantes da obra: o fato de que, para uma obra composta por discursos em primeira pessoa, a autora opta pela solução mais pouco imaginativa de todas, a de fazer seus personagens falarem todos com uma espécie de “voz padrão” indistinta – o caminho mais seguro para matar ainda no ovo uma história que deveria ser polifônica. O segundo problema é que, ao justapor as falas inventadas de seus personagens, ela usa muito pouco do humor caótico que era a marca de Mate-Me, Por Favor, por exemplo, e mesmo a ambiguidade narrativa aqui é muito menor, uma vez que a narrativa ficcional de Taylor Jenkis Reed sempre dá um jeito de subentender que no meio daquela confusão toda há sim um depoimento que tem mais chance de estar certo do que os outros.
Conjunto incompleto
E há ainda um terceiro problema, que é o que eu realmente queria falar aqui. São realmente poucos os bons romances sobre música – principalmente música pop –, e isso porque, embora possam conversar e colaborar, a literatura narrativa e a música não se traduzem muito bem uma na outra, mais ainda se o trânsito for da primeira para a segunda. E praticamente todo casamento tentado entre eles nos últimos 40 anos, por aí, tende a ser… incompleto quando o escritor cede à tentação de se servir de uma das manias mais chatas a emergir neste breve século 21: a transcrição completa de uma letra de música como um elemento que terá papel-chave em uma determinada cena. E isso porque apenas a letra de uma música na frieza branca do papel é um construto anêmico e tristemente solitário amputado da música para a qual aqueles versos foram compostos. Não é a canção completa. Não é um poema inteiro.
Como define o ensaísta e letrista Francisco Bosco em sua boa coletânea de ensaios à moda Barthes Banalogias, de 2007:
“A pré-condição para um juízo estético pertinente sobre a letra de música é a compreensão das diferentes propriedades estruturais do poema e da canção. Essa diferença, em uma palavra, é a seguinte: o poema é autotélico, dirige-se a si mesmo, sua estrutura é “simples” (discurso verbal, apenas), sua tarefa, como a de toda obra de arte, segundo a estética deleuziana, é pôr-se de pé, mas pôr-se de pé sozinho, através de seus próprios recursos; já a letra de música é heterotélica, dirige-se à totalidade estrutural a que pertence – a canção –, e por isso não deve pôr-se de pé, mas antes pôr de pé a canção, o que só será feito no jogo das reciprocidades e sobredeterminações de sentido que se dá no interior da estrutura “complexa” da canção (discurso verbal, linguagem musical).”
Pois bem: Daisy Jones and the Six tem lá um probleminha maior do que usar de modo muito controlado um formato que deveria exaltar a ambiguidade. É um livro sobre uma banda fictícia fazendo músicas fictícias que deveriam ser lendárias, mas que, quando suas letras são dispostas na página, sofrem ainda mais do problema de identidade fraturada de que se fala aqui. E de forma ainda mais estranha, porque ao ver as letras de uma canção fictícia você sabe que está faltando algo, mas não tem sequer as ferramentas para completar o resto, como acontece quando você lê por escrito os versos de uma canção que conhece. Ao menos você consegue evocar a melodia.
Claro, há as experiências em que uma canção é resultado da apropriação musical de um poema escrito para ser poema mesmo. Alguns resultados desse tipo de experiência até podem ser bastante bons: Rosa de Hiroshima, de Vinícius de Moraes, pelos Secos & Molhados; Se tu viesses ver-me à tardinha, de Florbela Espanca, na versão de Marcos Assumpção; Satirália, de Haroldo de Campos, musicado pelo Arthur de Faria (se bem que aí o resultado final já se beneficia da polinização cruzada inicial, uma vez que, ao ser publicado no livro Crisamtempo, de 1998, Satirália já vinha com a “rubrica” no subtítulo que o definia como um “rock à moda dos Titãs“, que foi exatamente no que Faria o transformou ao gravar o poema com a Orkestra do Caos no disco A Vida Agitada da Superfície). Claro, o manual do comportamento de bom tom do aspirante a intelectual brasileiro mandaria que eu interrompesse os exemplos aqui, já que são todos defensáveis exemplares da “rica música nacional”, mas às favas essa afetação, porque eu faço questão de lembrar também de Rime of the Ancient Mariner, de Coleridge, transformado em música pelo Iron Maiden e vocês aí que lidem com isso ou vão chorar no cantinho com seu banquinho e seu violão.
Dylan e o Nobel
Mas dei todos esses exemplos na verdade para defender o ponto de vista contrário: que embora essas sejam algumas notáveis exceções, as melhores músicas são sempre as que foram compostas COMO canção: a música para a letra, a letra sobre a música, as duas coisas em conjunto, de modo que a apreciação crítica não é completa se não houver uma análise conjunta dos aspectos que unem letra e música (aliás, não entendo mesmo essa mania recente de publicar livros de 700 páginas com todas as letras de um compositor, algo que, em época de internet e sem o disco junto, me parece apenas um inaceitável arvorecídio inconsequente).
Essa, no fim das contas, é praticamente a mesma discussão que todo mundo já meio que deu pitaco na época em que Bob Dylan ganhou o Nobel de Literatura. Vivemos um momento em que a crítica e a produção artística se comprazem em “misturar conceitos” e em “embaralhar categorias estanques”. O barulho que se seguiu ao Nobel de Dylan meio que mostra os limites desse tipo de abordagem, porque a maior parte dele era justamente sobre categorização. Sendo a canção uma forma poética que precisa da análise conjunta de letra e música, uma vez que uma foi composta PARA a outra, não importando a ordem em que isso aconteceu, seria lícito que ela fosse o veículo para que um autor ganhasse o Nobel de Literatura? Não se discute a qualidade das canções, mas seriam elas “literatura?” Sendo que Dylan ainda é um dos exemplares mais “narrativos” dentre os grandes músicos populares do século XX, muitas de suas músicas são pequenos contos imagéticos e surreais, como Hurricane, Joey, The Lonesome Death of Hattie Carroll, Romance in Durango (que eu ouvi primeiro a versão do Fagner numa rádio do interior, o que quase arruinou a experiência inteira pra todo o sempre) etc.
Há partidários apaixonados que defendem que sim, a canção é uma forma literária, há inclusive um núcleo de estudos acadêmicos aqui mesmo na UFRGS que estuda a forma canção como arte – e muitos dos integrantes desse núcleo, sei porque conheço alguns, defenderam o quanto a reação contrária à premiação a Dylan parecia desconsiderar o potencial narrativo desse formato em particular, mas sei que alguns teriam a mesma reação perplexa se, em algum momento muito hipotético no futuro, num rasgo de sanidade que eu prevejo que não virá nunca, um autor de quadrinhos como Alan Moore também fosse premiado, sendo que a “forma gibi”, se podemos nos expressar assim, também é um casamento meio inseparável entre texto e outra coisa oriunda de outro campo. A melodia na música, as artes visuais e o design no quadrinho.
Erraram com o rock
Mas isso tudo era na verdade uma reflexão provocada por mais uma grande decepção particular minha diante de uma obra que prometia cruzar duas coisas de que gosto muito: rock e literatura. De modo geral, o rock é um dos mais “órfãos” dos gêneros quando se trata em boas representações na literatura. A música cumpre um papel importante em Proust, por exemplo, sem que seja constrangedor ler suas passagens descrevendo a famosa frase musical pela qual seu personagem Charles Swann é obcecado no primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido. Mesmo uma série extensa como os 10 livros de Jean-Christophe, a hoje injustamente pouco lembrada biografia disfarçada de Beethoven por Romain Rolland, consegue ser mais segura – e isso porque ambos os exemplos estão aqui traduzindo para a literatura músicas que não costumam ter letra.
Com a ênfase que a canção pop põe na letra de modo geral, metade do material à disposição sobre rock hoje em dia é um tipo de literatura que confunde as potencialidades pop da narrativa com uma licença para dizer palavrão, listar nomes aleatórios de músicas e escrever sobre os mesmos tropos já desgastados da vida noturna como um vórtice devorador etc. Não me lembro de um bom romance sobre rock, o rock me parece bem melhor servido por grandes obras jornalísticas, mas seu uso na ficção normalmente é equivocado, irregular quando não pernóstico. Nirvana Nunca Mais, de Mark Lindquist, sobre o grunge, é uma narrativa com muitos focos que se perde lindamente depois de até iniciar com uma premissa interessante. Um dos exemplos recentes mais incensados, Cidade em Chamas, um calhamaço escrito por Garth Risk Hellberg, um épico de 700 páginas sobre o punk dos anos 1970. O que já mostra que o projeto havia nascido equivocado desde o início. Ou você tem um épico de 700 páginas com dezenas de linhas narrativas ou você tem o punk, um gênero que nasce para impedir que a precariedade técnica seja um empecilho para a expressão artística, e, portanto, é rápido, cru e visceral.
Taí. Talvez a grande questão não seja de tradução de linguagem, mas de como algumas coisas parecem se perder quando se tenta capturar no romance, uma forma longa e de longo curso, a magia que torna relevante uma grande canção – uma gema breve e concentrada.
NEM TE CONTO Nº6
Dado o tema de hoje, fiquei tentado a indicar um conto obscuríssimo da coletânea Treze, livro de contos do roqueiro Pete Townsend, do The Who, que eu havia lido quando adolescente, mas ao reler para ter certeza, vi que não tinha nenhum conto realmente bom ali, mesmo os que eu lembrava com mais afeto. Assim, vamos para outro conto sobre música, de um autor brasileiro, embora esse tenha um viés relativamente diverso da temática que eu abordei aqui.
“UM LUGAR COMO OUTRO QUALQUER”, de Paulo Scott
Da Coletânea Ainda Orangotangos (edição original pela Livros do Mal, em 2003. Relançamento pela Bertrand Brasil, em 2007)
Uma banda chega para animar uma festa em um clube grã-fino em uma cidade no interior. O racismo nem um pouco velado com que a banda, em todo ou em sua maioria composta por negros, é recebida pelos ricaços de nariz empinado que estão organizando o baile leva à explosão inevitável de um conflito que pode resultar até mesmo na transferência da apresentação para um local bastante inusitado, mas, em última análise, apropriado.
O interessante de ler este breve conto – e que é, em sua linearidade e em seu tratamento mais explícito de seus temas umas das histórias mais destoantes do conjunto do livro – é ver não apenas Scott exercitando uma narrativa mais direta e menos elíptica do que o seu habitual como também notar que já estava ali, em embrião, em seu primeiro livro, o tema do racismo e do preconceito, tema que voltaria com força total em seu romance recente Marrom & Amarelo.